Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº2/ 2023

2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023

Artigo de opinião

O subúrbio e seus clubes

Victor Andrade de Melo

Sou nascido e criado no subúrbio do Rio de Janeiro. Dos meus 51 anos de vida, os primeiros 25 foram vividos, em experiências diversas, em bairros como Jabour, Senador Camará, Bangu, Sepetiba, Campo Grande, Marechal Hermes, Piedade, Méier, Penha, entre outros. Naqueles anos 1970 e 1980, ainda se mantinham com maior altivez uma instituição que nos dias atuais se encontra ameaçada pelos rumos do progresso: os clubes esportivos.
No subúrbio carioca, as primeiras agremiações esportivas foram criadas nos anos finais do século XIX, crescendo em número nas décadas iniciais da centúria seguinte, pari passu com o maior desenvolvimento, estruturação e diversificação societária da zona suburbana. Estavam inseridas num movimento de conformação de diversões públicas, juntamente com o surgimento de cinemas, teatros, restaurantes, entre outros.

Imagens da comemoração do 9º aniversário do Ciclo Suburbano, agremiação de ciclismo de Madureira. Revista da Semana, 19 jan. 1935, p. 32.

O seu auge se deu nos anos 1950. Praticamente todos os bairros da zona suburbana tinham ao menos um clube esportivo, quando não outros mais. Sua intensa atividade era sentida especialmente nos fins de semana e nos momentos festivos. Suas realizações amiúde chegavam às páginas de jornais e revistas. Mesmo que centralmente dedicados ao esporte, eram também espaços de vida social, artística, política, econômica.
Isso é, para além de serem locais de diversão, os clubes esportivos foram importantes fóruns de organização dos mais distintos grupos sociais. Ao seu redor, se estruturavam as mais diversas iniciativas que forjavam uma experiência compartilhada que passava pela reivindicação, mas também estabelecimento de parâmetros de vida em comum, ocasiões em que se aprendia a “ser suburbano” numa direção que contestava os estigmas oriundos das regiões central e sul, afirmando-se um jeito específico de ser.
Nessa medida, há que se entender os clubes como agências de produção do espaço suburbano. São produtos e produtores, dialogando com um perfil socioeconômico prenunciado, ajudando a consolidá-lo, mas também apresentando as releituras que se estabeleciam nas experiências cotidianas.

Imagem do jogo Sport Club Mackenzie (Méier) x Brasil. Capa de Vida Sportiva, 15 jun. 1918.

Pode-se claramente perceber que os diferentes perfis dos muitos clubes dialogavam com as regularidades que houve na conformação dos distintos bairros, processo que em linhas gerais inicialmente atendeu a sete vocações decorrentes: desenvolvimento industrial (como Bangu), estruturação comercial (como Madureira), instalação de unidades militares (como Realengo), projetos habitacionais (como Marechal Hermes), manutenção de caráter rural (como Santa Cruz), representação de caráter paradisíaco (como a Ilha do Governador).
Em todos os casos, como os aspectos do cotidiano passavam pelos clubes, suas atividades eram indicações das dinâmicas citadinas no que tange não só aos acordos, rivalidades, tensões e alianças dos personagens da zona suburbana, como também naquilo que se referia às relações com outras regiões da cidade, expressões dos trânsitos culturais que no Rio de Janeiro nunca se deram de mão única: o que vinha do Centro/Zona Sul era interpretado pelo subúrbio que, por sua vez, também influenciava aquelas regiões.
Perceba-se que estamos a sugerir que os clubes dramatizaram os embates identitários do Rio de Janeiro, a conformação sempre tensa e ativa de identidades (entendidas como estruturas estruturantes) de bairro, de zona (central, suburbana, sul), de cidade/carioca e mesmo nacional (dada à condição de capitalidade mantida até 1960).
As experiências dos clubes suburbanos, enfim, ajudam a perceber por outras lentes – aquelas relativas às sociabilidades – o processo de urbanização do Rio de Janeiro. Estimulam a considerar mais apropriadamente as ocorrências do cotidiano e de outras instituições que não as mais usualmente reconhecidas (em geral de caráter político público). Explicitam a heterogeneidade e diversidade dos cenários de construção da cidade. Chamam a atenção para a necessidade de melhor considerar as agências de lideranças e moradores da região.

Baile do Sport Náutico de Ramos. O Malho, 1 set. 1923, p. 25.

A partir dos anos 1960, os clubes suburbanos começaram a fechar suas portas por motivos diversos, entre os quais: uma nova formação societária da região em função do afluxo de outros grupos, uma valorização generalizada de vivências domésticas em função do avanço dos meios de comunicação, especulação imobiliária, surgimento de “enclaves fortificados” (condomínios). Ainda ecoam na memória, contudo, suas ações do passado, junto com aquelas das agremiações que se mantiveram de portas abertas, boa parte enfrentando dificuldades diversas.
Em um momento em que coletivos diversos se estruturam para chamar atenção para o subúrbio carioca, inclusive para aquilo relativo a seu patrimônio material e imaterial, vale a pena não esquecermos os clubes, pensando em estratégias para fortalecer as experiências ainda em andamento, para recuperar aquelas que possam ser alvissareiras, no mínimo para que registremos mais amiúde essa parte importante da história suburbana.

VICTOR ANDRADE DE MELO é professor do Programa de Pós-graduação em História Comparada (IH/UFRJ) e do programa de Pós-graduação em Educação (FE/UFRJ). Coordenador do "Sport": Laboratória de História do Esporte e do Lazer. Autor do livro Cidade Expandida: o esporte nos subúrbios do Rio de Janeiro (Editora 7 Letras, 2022)