2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023
Entre a Invisibilidade Imposta e o Reexistir Afetivo: Resistência Simbólica Suburbana no Bairro do Andaraí
Há na sociedade uma tensão constante entre diferentes narrativas. Esse tipo de circunstância ocorre em todos os níveis de nosso tecido social. Nesse sentido, as discussões espaço-territoriais não poderiam estar de fora desse escopo. É por esse viés que escrevo humildemente nestas linhas. A finalidade do que ora registro é a seguinte: problematizar sobre o porquê de determinadas centralidades regionais (situadas na vasta região suburbana) receberem maior destaque e auspícios em detrimento dos bairros suburbanos vizinhos a elas que quase sempre são invisibilizados. Pior do que isso: muitas vezes, a visibilidade devida a esses subúrbios é deles subtraída em favor das centralidades regionais contíguas. Posto isto, o presente texto abordará a assimetria de tratamento existente entre a Tijuca e o Andaraí.
A imagem 1 apresenta um esquema com uma adaptação da Teoria das Localidades Centrais. Nela, há centralidades regionais e subúrbios contíguos a elas. No primeiro caso, temos bairros como a Tijuca, o Méier e Madureira. No segundo, respectivamente, o Andaraí, o Lins de Vasconcelos e Oswaldo Cruz. É imperativo clivar funcionalmente os bairros citados. Afinal, ainda há quem denomine centralidades regionais como “subúrbios”. E, quase sempre, essa classificação ignora fatos cientificamente comprovados, mantendo viva a percepção construída há décadas pelo senso comum de forma deletéria. Não, não basta os bairros se situarem nas zonas Norte e Oeste do Rio para que sejam classificados como subúrbios. Autores como Roberto Lobato Corrêa, Maurício Abreu e Nelson Fernandes, há pelo menos quatro décadas, refutam essa generalização. Ser um subúrbio ou uma centralidade regional tem a ver com a sua função na urbe, não com a sua mera localização no território da cidade. Nesse sentido, os bairros onde a função residencial é predominante e que são dependentes da centralidade regional mais próxima com vistas a acessar uma terciarização mais robusta e complexa são classificados como subúrbios.
Ocorre que, em geral, as centralidades regionais exercem uma zona de influência nos subúrbios vizinhos. Essa influência é econômica e político-administrativa. Daí a formação de regiões administrativas como a “Grande Tijuca”. Isso jamais pode ser confundido com o significado simbólico do lugar presente em cada bairro. Daí surge muitas vezes um conflito entre interesses econômicos difusos e perspectivas afetivas sobre os bairros. No primeiro caso, a tendência é a de haver uma apropriação territorial do bairro menos influente na hierarquia urbana pela centralidade a ele contígua. É daí que surgem distorções como pessoas que moram no Andaraí, mas se dizem habitantes da Tijuca (afeto negativo pelo bairro onde vivem) ou ainda de empreendimentos imobiliários construídos no Andaraí, mas que são ofertados como pertencentes à “Grande Tijuca”, invisibilizando o lugar a que de fato pertence.
Tijuca e Andaraí se situam numa das áreas nobres do Rio de Janeiro, na parte da Zona Norte mais próxima ao Centro e à Zona Sul. A partir da segunda metade do século XIX, com a implantação da infraestrutura de bondes, o que atualmente denominamos como a “Grande Tijuca” passou a ser uma das regiões para onde parte da classe média alta e das elites da época migraram para fugir do caos que havia tomado conta do Centro. Prova disso encontramos no clássico romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Nele, o casal Escobar e Sancha residiam no Andaraí, então uma localidade aburguesada da capital do Brasil Império.
Com o tempo, ao contrário de seus bairros vizinhos (Tijuca, Vila Isabel e Grajaú), o Andaraí passou a ser ocupado por segmentos sociais proletários, não raro enegrecidos e migrantes brancos empobrecidos em função de um conjunto de indústrias que foram implantadas em seu território. Esse fator criou uma aura pejorativa sobre o bairro que o estigmatiza desde então, contribuindo para a sua invisibilização. Os relatos de moradores demonstram que eles têm total consciência do que ocorre com o bairro e muitos lutam tenazmente contra esse processo.
O professor Fábio Carvalho, cuja família vive na região há mais de 100 anos, é incisivo sobre como se sente quando invisibilizam seu bairro: “Fico indignado quando Andaraí é visto como Tijuca ou Grajaú porque isso é um apagamento das memórias da localidade”. Nessa mesma linha, a pedagoga Márcia Barbosa afirma que “até pouco tempo não me incomodava, pois não conhecia a história do bairro. Me conscientizei depois de conhecer o coletivo “Pelas Ruas do Andaraí”. Note, a partir do que disse a pedagoga, o impacto que um genuíno e aguerrido ativismo de bairro pode causar na construção de uma potente identidade coletiva que lance mão das memórias associadas ao lugar no sentido de construir senso de pertencimento. O pesquisador e escritor Marcelo Lemos e a professora Paloma Maulaz também se ressentem do tratamento desrespeitoso ao lugar. Ele traça um notável panorama histórico do bairro que baliza como se desenvolveu esse processo e ela lembra que o SESC Tijuca se situa, de fato, no Andaraí, circunstância que ilustra aquilo que ora debatemos.
Mas o que faz com que um bairro como o Andaraí seja invisibilizado, a ponto de perder parte de seu território para os “primos ricos” vizinhos (Decreto PCRJ Nº 3.158/1981)?
Essa perda ocorreu em função de interesses da especulação imobiliária. Nesse ínterim, o bairro da Tijuca foi o maior agraciado com a aquisição territorial outrora pertencente ao Andaraí.
A verdade é que há um conflito perceptivo entre o fato de a Tijuca ser a core area da região e uma visão de mundo simbólica que parcela dos habitantes do Andaraí possui sobre o seu bairro. E é sintomático que, mais uma vez, interesses economicistas precificados ainda preponderem sobre os esforços que buscam valorizar o lugar pelo seu significado simbólico.