Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Artigo

As Origens do Futebol no Brasil

Lívia Vasconcelos dos Reis

“Charles Miller? Que nada, o futebol brasileiro surgiu em Bangu com Thomas Donohoe”. Com essa chamada, em matéria de 2014, o Diretor-Executivo do jornal Diário do Rio, Quintino Gomes Freire, abraça a tese da historiadora Gracilda Alves (SILVA, 1985), professora do Instituto de História/UFRJ, de que o bairro operário, localizado na Zona Oeste carioca, pode ter sido o pioneiro na história do futebol no Brasil.

A 9 de setembro de 1894, ocorreu, no pátio da Fábrica de Tecidos Bangu, uma partida de futebol que pode ter sido a primeira do país. Uma genuína “pelada”, organizada por “Seu Danau”, nome pelo qual Thomas Donohoe (1863-1925) – técnico tintureiro escocês e eleito vice-presidente na primeira administração da fábrica – era chamado pelos operários. A partida foi realizada com a autorização e incentivo do administrador do estabelecimento, João Ferrer (que virou nome de rua no bairro), dando, assim, condições para a realização do evento, possivelmente, anterior ao jogo capitaneado pelo paulistano Charles Miller, em abril de 1895.

Uma informação consagrada na literatura, é a de que o maior contingente imigratório brasileiro, em terras cariocas, sempre foi de portugueses. Esse é um dado genérico, todavia, nas fábricas recém-inauguradas no século XIX, a “expertise” necessária era característica do currículo dos nacionais oriundos do berço da industrialização mundial, a Inglaterra.

O futebol, como esporte moderno, surgiu na Inglaterra em torno de 1863. Aqui no Brasil, há relatos da presença, ainda fraca, do esporte nas duas últimas décadas do século XIX. Em seus primeiros anos de existência, era uma modalidade apreciada e praticada, em maior número, pelas elites.

A história assinala o protagonismo de Charles Miller em relação à organização da primeira partida no país, em abril de 1895, já com a aplicação das regras oficiais (incluindo o campo com medidas exatas, uniformes e a pelota oficial), com o placar: São Paulo Railway 4 x 2 The Team of Gaz (MOLINARI, 2004). Porém, existem registros, na linha da tradição oral, sobre “peladas” realizadas em diversas cidades brasileiras, em datas anteriores, mas sem documentação comprobatória. Historiadores contam que uma dessas partidas aconteceu no campo de futebol da Fábrica Bangu, em 9 de setembro de 1894. “Seu Danau” organizou o jogo informal, usando duas traves para fazer as vezes de gol improvisado, não haviam uniformes e os times foram compostos por seis jogadores de cada lado. A bola de futebol fora trazida pela esposa de Donohoe, Elizabeth Donohe, que veio da Escócia com os filhos do casal.

A organização das atividades da fábrica, sob a batuta do diretor-chefe João Ferrer, foi um elemento-chave para que o domingo fosse estabelecido como o dia para se jogar futebol. Inicialmente era realizada uma feira no local do campo, impedindo seu uso para o lazer dos operários, mas Ferrer mandou construir um mercado para o comércio dos gêneros vendidos na feira, desembaraçando a utilização do campo. E assim, pouco a pouco, os operários foram se juntando aos técnicos ingleses, naquele novíssimo esporte que iria se tornar, em finais dos anos 1930, o maior esporte de massa do Brasil. Ao mesmo tempo, ocorria a fundação do maior clube operário carioca, em 1904, surgido justamente em Bangu, na fábrica, tendo como presidente de honra o Seu Ferrer e como vice-presidente, Seu Danau, cujo filho caçula, inclusive, viria a se tornar o primeiro grande ídolo do The Bangu Atlhetic Club, o atacante Patrick Donohoe, que jogou no time entre 1913 e 1922.

Em vista da ausência de documentação, não se pode afirmar que a primeira partida de futebol do Brasil tenha sido efetivamente a realizada no campo de Bangu, tampouco há relevância definitiva em buscar essa confirmação. Mas, seria bastante razoável pensar na gênese do futebol brasileiro como fruto da prática esportiva de imigrantes ingleses, que chegavam para laborar em fábricas localizadas no primeiro maior polo fabril do país.

Se em São Paulo aconteceu a partida emblemática, com base nas regras formais e com vasta documentação, podemos dizer que, no Rio, houve o pioneirismo do “The Bangu Athletic Club” e seu protagonismo na formação e configuração do futebol nacional, dentro e fora das quatro linhas.

Em Bangu, antes e depois da fábrica – e até os dias atuais – a maioria da população é de negros, mestiços e mulatos. Quando o time foi fundado, em 1904, aceitava-se jogadores operários e pretos. Tanto que, em 1905, o clube contratou o primeiro jogador negro (que era também operário) do time, Francisco Carregal. Contratação essa escandalosa para a modalidade esportiva, primeiramente abraçada pelas elites brancas e aristocráticas, imitadoras das modas inglesas, que passaram a ver o Bangu com maus olhos, por suas livres contratações. Assim, em 1907, a Liga Carioca de Futebol proibiu  aos clubes adotarem “homens de cor” em seus quadros de jogadores, em uma estratégia nitidamente de ataque ao clube do bairro operário.

O feito da Liga gerou forte reação no grupo banguense, que, bancando sua equipe e suas próprias diretivas, retirou-se da Liga, firme na ação de repúdio contra a instituição.

Em termos de História Social, foi a partir da presença e da atuação de negros e mestiços que o futebol brasileiro ganhou identidade própria, com seus contornos e feições definidos pela “cara do povo”, ou melhor dizendo, da nação brasileira. Nesse sentido, a atuação do Bangu tem um peso enorme na configuração do esporte, outrora de elite, mas que, com a contribuição definitiva da agremiação, ganhou o jeito preto e forte, tradicional e característico do nosso futebol canarinho, fruto, dentre outros fatores, do protagonismo e pioneirismo da luta do time de operários, que contribuiu definitivamente para o desenho e avanço do esporte da pelota.

Se Mário Filho estava correto – e tudo nos leva a crer que estava! –, o futebol brasileiro, como conhecemos, está muito mais vinculado a Bangu e Seu Danau que a Charles Miller e a primeira partida em solo paulistano.

Referências
FILHO, Mário. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro, Mauad X, 2010.

MOLINARI, Carlos. Nós é que somos banguenses. Disponível em https://www.bangu.net/livros/nosequesomosbanguenses/1889a1903.php – Acessado em 19/07/2023

JUNIOR, Nei Jorge dos Santos. Um Padrinho esportivo: João Ferrer e o Bangu A.C, 2017. Disponível em https://ludopedio.org.br/arquibancada/joao-ferrer/ – Acessado em 19/07/2023

SILVA, Gracilda Alves de Azevedo. Bangu: A Fábrica e o Bairro: Um estudo histórico (1889-1930). Dissertação de Mestrado em História, UFRJ: RJ, Brasil, 1985.


Nota dos editores
O curta-metragem “Bola para Seu Danau”, dirigido por: Eduardo Souza Lima, de 2016 é uma ficção baseada nos fatos relatados pela autora

Sobre a autora: LÍVIA VASCONCELOS DOS REIS é professora da SEEDUC-RJ, com mestrado em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ e especialização em Ensino de História pela FE/UFRJ. Suburbana e irajaense, botafoguense e portelense.