Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº2/ 2023

2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023

Crônica

Nó(s) de Guadalupe

Adriana Baptista

Todo dia ele fazia tudo igual… caminhava da ponta do bloco 20, passava embaixo da minha janela, atravessava a pequena ponte do Rio Acari, portando as balizas de ferro, nos ombros do corpo grande, negro e forte, ancorado pelas pernas levemente arcadas, até chegar ao campão da Mangueira, onde passaria a manhã inteira treinando e jogando futebol. À tarde, começava outra jornada de dedicação, amor e treinamento. Aos seus fiéis escudeiros, dezenas de meninos da região, cabia a tarefa de carregar as bolas de futebol e os jogos de camisa. Eu deveria ter uns 10 anos quando recebi a notícia do acidente que tirou a vida Dele, o querido Catanha. Era uma manhã chuvosa e cinzenta, em Guadalupe, no final dos anos 70. Uma verdadeira romaria se formou em direção a Estrada do Camboatá, já em Deodoro, local da tragédia. Naquele dia, não teve futebol e nem no outro, e no outro dia também. A pelada de Domingo também foi suspensa. Ficamos de luto até que o Seu Javá, um dos nossos mais velhos, deu continuidade ao seu legado que, àquelas alturas, já tinha revelado craques como Donato, que foi contratado pelo Vasco, e o Jorginho, que passou pelo América, Flamengo e até mesmo participou da Copa do Mundo de 1994.

Jorginho, jogador do Flamengo

A dinâmica dos jogos de futebol, no Campão da Mangueira, cuja organização se alternava pelas lideranças locais, se sucedeu por muitos anos. Os jogos eram tão sagrados que seu território foi preservado, diferente do entorno, que era disputado para a construção de moradias até que o “Jorginho do Flamengo” começa a dar uma outra dimensão aos propósitos do finado Catanha, construindo no local, o Instituto Bola pra Frente, uma escola de formação cidadã e treinamento de futebol para crianças e jovens. Não por acaso, o Muquiço é o atual Campeão da Taça das Favelas.

Nem tudo em Guadalupe termina em gols. O bairro, que foi projetado para ser um modelo de urbanização da cidade, no final dos anos 1950, nem de longe, lembra o parque industrial e residencial da sua origem. Segue entre nó(s), sendo o cenário do assassinato do músico que levou 80 tiros de militares do exército e dos roubos de carga, na Av.Brasil, integrando a lista de regiões mais violentas da cidade

Geograficamente, Guadalupe fica na Zona Norte do Município do Rio de Janeiro, entre Deodoro (Zona Oeste) e Marechal Hermes (Zona Norte). Cortado pela Av.Brasil, o bairro também faz divisa com Pavuna, Ricardo de Albuquerque, Costa Barros, Honório Gurgel e Barros Filho. Acontece que para cada uma dessas “fronteiras” há sentimentos e modos de viver diferentes, há uma organização arquitetônica que revelam períodos de políticas de habitação popular que constituíram o bairro, como as casas balão e o Conjunto Habitacional Presidente Vargas, composto por 26 blocos de apartamentos de três quartos, na Era Vargas.
Para os meus pais, Guadalupe representa o encontro; para o Profeta Gentileza, o seu abrigo, o lugar de descanso após a sua labuta diária pelos muros da Cidade do Rio de Janeiro. Já para a icônica Beth Boné, ex-Chacrete do programa televisivo do Chacrinha, o seu reinado; para os “Crias”, o campeão da Taça das Favelas; para o “Jorginho”, a volta pra casa, um lugar de potência. Em sua biografia, Caetano Veloso disse que “Guadalupe em mim, é fundação”, homenageando o bairro em que viveu parte de sua adolescência, cuja extensão territorial era a mesma da antiga fábrica da Remington e do Guadalupe Country Clube, conhecido pela piscina olímpica e pelos famosos bailes do Copa 7 e do Devaneios, reforçando o sentimento de que esta é a parte mais nobre do bairro, longe da presença ostensiva e armada do narcotráfico.

Sendo Guadalupe um bairro projetado para ser um modelo de território urbanizado, vizinho do celebrado bairro de Madureira, o que faltou para o seu desenvolvimento e visibilidade? Como se justifica tamanho declínio social e cultural? Quem são seus maiores expoentes? O que esperar das futuras gerações?
Se para Caetano, Guadalupe é fundação, para mim, é minha régua e meu compasso. Um lugar de muitas histórias e palavras inauditas que me propus a contar entre memórias e dados, no Programa de Pós-graduação em Educação, Cultura e Comunicação de Periferias/UERJ.

ADRIANA BAPTISTA é cria de Guadalupe, filha da Dona Maria Helena e mãe do Gaio! É apaixonada pela arte de educar, comunicar e produzir cultura, como práticas pelo bem viver e emancipação do povo preto. Mestranda em Educação, Comunicação e Cultura de Periferias/UERJ. Pedagoga atuante na educação popular e formação cidadã de jovens; Pós-graduada em Novas Metodologias de Ensino/PUC; Jornalista, Publicitária e Produtora Cultural .