Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Entrevista

Educação antirracista no Rio de Janeiro

Flávio Lima

Especialmente para esta edição, o professor, geógrafo, compositor musical e gestor cultural Flávio Lima vai conversar com três mulheres pretas, brasileiras, batalhadoras – Karen Lamego, Lavini de Castro e Mônica Aniceto – que vão falar um pouquinho sobre educação antirracista, dentro do contexto de educação nos subúrbios. Flávio e as entrevistadas discutirão sobre as dificuldades que professores e ativistas encontram na efetivação de uma Lei (10.639) promulgada há mais de vinte anos. Publicamos aqui um extrato dessa conversa:

Flávio Lima – Quem é Karen Lamego?

KAREN – Sou professora, contadora de histórias; costumo dizer que sou a continuidade.

Flávio Lima – Quem é Lavini de Castro?

LAVINI – Sou Professora de História. Atualmente tenho me dedicado a estudar a Lei 10.639/2003. Eu tenho aquele “esperançar”, conforme ensinou Paulo Freire: acredito na efetividade daquela Lei pela mediação de professores que estão se aprimorando nessa prática pedagógica antirracista.

Flávio Lima – Quem é Mônica Aniceto?

MÔNICA – Sou professora de língua portuguesa no município do Rio, integrante da rede de professores antirracista. Atualmente trabalho em uma escola cuja proposta é ser modelo de educação antirracista.

Flávio Lima – O fato de termos uma luta anterior, liderada por Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales, ajuda um pouco nessa luta antirracista, né?

KAREN – Costumo dizer que sou a continuidade das minhas avós, da minha mãe, das minhas professoras pretas e das minhas amigas, que estão nesta entrevista comigo, as quais admiro muito. Sinto que sou a continuidade, porque a primeira vez que escutei qualquer coisa sobre pensar em educação antirracista foi no pré-vestibular, quando tive uma professora (Marina), mulher preta. Eu não concordo muito que a gente está com dificuldade de implementar a Lei. Já temos especialização em História da África, temos as crianças nos debates, junto aos professores, que até podem pensar que não estão implementando a Lei, mas estão. Temos estudos recentes voltados para esta questão na educação. A dificuldade dos professores que pensam em implementar a Lei, é conseguirem diálogos com seus pares, com Diretores das escolas… Enfim, se a Lei não funcionasse, a gente não estaria aqui.
Mas eu, Lavini, Mônica e muitos outros somos frutos da 10.639. Procuro focar no que já temos e não no que não temos. Não é à toa que estamos aqui como referência desse lugar.

LAVINI – É preciso colocar alguns dados estatísticos. Há pesquisas que trabalham com dados estatísticos sobre essa implementação. Ainda há muita dificuldade de se perceber projetos, planos de aula, currículos modificados… Então, quando a gente fala dos entraves, a gente está falando de dados. É claro que nós temos ações individuais, que muitas vezes sustentam sozinhas ‒ dentro das suas salas de aulas, sem nenhuma ajuda da Direção ou Gestão, nenhuma Secretaria ‒ projetos vinculados à Lei. Então, a Lei não é apenas uma questão de mudança de um discurso ou de uma narrativa. A Lei precisa ser toda uma estrutura. Talvez ‒ é aí que entra o que a Karen está falando ‒ porque existem profissionais atuando; às vezes, não se percebe que já estão fazendo valer essa Lei, mas eles não estão tendo nenhum tipo de estrutura para essa aplicabilidade. Então, entra de novo o entrave: se é uma Lei, ela tem que ser cumprida. É uma Lei. Não é uma questão de opção! É uma política pública e é uma norma que tem que ser aplicada. Mas, o professor se vê sozinho a partir do momento em que se depara com várias dificuldades ‒ falta de material, falta de recursos pedagógicos, falta de formação conveniente… ‒ e se encontra num grupamento social que tenta (e às vezes consegue!) tirar dele a energia de falar sobre diversidade. Por exemplo, quando quer abordar a cultura iorubá, a cultura da capoeira, quando quer falar de algo que não é hegemônico, pessoas que estão num entrave fundamentalista, conservador, praticando ideologias ligadas à religiosidade judaico-cristã, prejudicam a ação dele em sala de aula.
Eu não queria mais estar sozinha. Desde os nossos ancestrais até hoje, a gente está sempre nas possibilidades.

Flávio Lima – Mônica, me fala da sua experiência com educação antirracista, na prática.

MÔNICA – Eu estou entre a professora Karen e a professora Lavini. Sou da primeira turma de cotas do Brasil, na Uerj. Mas há dificuldade na implementação da Lei. Eu acho que tem bolhas. Se eu for olhar só para minha bolha, que é a bolha de uma escola do subúrbio, que percebeu que entender relações étnico-raciais traz lucro, traz visibilidade, traz Ideb. Procurou entender que escola é aquela, que crianças são aquelas. O que mudou a escola foi o Censo de . Sessenta e nove por cento dos alunos da escola se autodeclararam negros ou pardos. E entender que aquela escola não estava trabalhando para aquelas crianças fez toda a diferença. Quando eu cheguei à escola, em , o Ideb era de 3.2; hoje, é de 5.7. Deu um salto significativo! E estou falando de capitalismo, de números. Mas eu estou numa bolha que entendeu a 10.639. Então, nesse sentido, eu estou com as duas, Karen e Lavini: está dando certo, mas estou numa bolha, no Rio de Janeiro, e numa Secretaria que tem uma Gerência de Relações Étnico-Raciais. A criança abre o livro da Prefeitura e vê ali um monte de crianças pretas. Isso me dá alegria. Eu acho que a escola pública dá autonomia para o professor que quer fazer. Então, neste sentido, a escola pública dá um show na 10.639. Mas eu também sei que tem gestão que não quer fazer, tem professor que não quer fazer.

Flávio Lima – Especificamente, qual é o tipo de confronto entre os grupos neopentecostais e a educação antirracista na escola?

LAVINI – Essa é uma questão em que a gente pode falar de aparato ideológico. É a ideologia ‒ mais que ideologia ‒ é a crença. Você vê que são famílias afro-brasileiras que estão com um discurso muito conservador e até sendo fundamentalistas dessa visão judaico-cristã, que não conseguem enxergar potencial criativo, potencial narrativo de uma outra visão do mundo. Não tem como você chegar para essas famílias com essas culturas e religiosidade e falar “você é preto e tem que valorizar sua ancestralidade”, não vai ser por aí. Então, você entra numa questão de disputa de visão de mundo, de cultura e muitas das vezes as pessoas pensam que a aplicação da Lei 10.639 é para impor uma questão religiosa. Acreditam que a Lei é para ensinar religião. Quando você fala da cultura iorubá, sobre valores civilizatórios afro-brasileiros, por exemplo, logo pensam: meu filho vai aprender macumba. Certa vez, fui chamada para uma escola do Ensino Médio, onde muitos jovens eram negros, os quais me disseram: “Eu não vou ficar nessa aula não. Eu não estou aqui para aprender macumba”. E eu não estava de turbante ou alguma coisa que pudesse chamar atenção para uma característica de estética cultural afro-brasileira. Então é muito complicado, porque você está na luta do discurso, é a disputa do discurso. A tensão sobre ensinar ou não isso vai acontecer, precisam entender que são aspectos culturais. Uma coisa é educação familiar, outra coisa é ensino sobre diversidade. Então, cada professor, de forma pedagógica, deve acolher o aluno e buscar um outro caminho. Exemplo: “Por que você não quer aprender? Olha como o mundo é diverso! Existe isso, existe aquilo, várias visões de mundo!”. A abordagem deve ser de acolhimento, de forma pedagógica deve-se buscar outro caminho. Isso, para não perder o aluno e não perder a família. Então você acolhe e pergunta: é mesmo? Concluindo: é muito complicado, mas existe uma insistência, pedagógica, sobre diversidade.

Flávio Lima – Então, pelo que podemos entender, a Lei 10.639 foi promulgada há mais de vinte anos e, até hoje, há entraves e resistências para a sua implementação.

Entrevista no CASARTI – Casa do Artista Independente Da esquerda para a direita: Profª Mônica Aniceto – Profª – Lavivi de Castro – Profª Karen Lamego – Prof. Flávio Lima

FLÁVIO LIMA é professor, geógrafo, compositor musical e gestor cultural. Produziu e lançou em 2022 o documentário " A cor do vil", disponível no youtube em https://www.youtube.com/watch?v=wZv4wK2wUWs