Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Artigo de opinião

Quem é do axé pode dizer que é?

Bruna Marques Cabral

O presente artigo visa discutir o impacto da violência às religiões de matriz africana, na região de Brás de Pina e adjacências, sobretudo as perseguições sofridas por docentes e discentes integrantes do referido segmento religioso. Diante desse cenário, é possível assumir sua fé e se dizer do axé?
A partir do final dos anos 70 do século XX, novos atores sociais na cena política, protagonizados pelos movimentos populares, sobretudo os ligados ao gênero e à etnia, passaram a reivindicar maior participação e reconhecimento de seus direitos de cidadania. Entre esses movimentos sociais, podemos indicar o movimento indigenista e os da consciência negra, que lutam contra quaisquer formas de preconceito e discriminação racial, bem como pelo direito à diferença, pautada no estudo e valorização de aspectos da cultura afro-brasileira.

É nesse contexto que se insere a questão relativa à valorização da diversidade étnico-cultural de nossa formação no sistema educacional brasileiro, no qual desponta a inserção de temáticas e conteúdos programáticos sobre a história da África e sobre as culturas afro-brasileira e indígena. Assim, consideramos de fundamental importância o cumprimento das leis 10.639/2003 e 11.645/2008 na educação básica, por sabermos que a instituição escolar tem um papel fundamental no combate ao preconceito e à discriminação, porque participa na formulação de atitudes e valores essenciais à formação da cidadania de nossos educandos.

Trazendo para a realidade de Brás de Pina e seu entorno, enfrentamos um problema que vai além da implementação das referidas leis nas escolas, ou seja, o impacto do Complexo de Israel na região. Trata-se de um conjunto de favelas, liderado por Álvaro Malaquias Santa Rosa, de 34 anos, mais conhecido como Peixão, evangélico e pastor ordenado pela Assembleia de Deus Ministério de Portas Abertas. Entre os moradores da comunidade de Parada de Lucas, o referido líder tem filiação evangélica conhecida por todos.

Nesse sentido, o Terceiro Comando Puro se fortalece no cenário do narcotráfico do Rio de Janeiro, avançando em favelas e periferias de seu domínio territorial, com o seguinte slogan: “Jesus é o dono do lugar”. A facção liderada pelo pastor se torna a segunda maior organização do narcotráfico do estado , perdendo somente para a sua maior rival, o Comando Vermelho.
Dentro desse contexto, em novembro de 2016, a comunidade da Cidade Alta deixou de ser um território do Comando Vermelho e foi conquistada pelo Terceiro Comando Puro, especificamente pela Tropa do mano Arão. Ocorreram alguns conflitos e resistências, até que Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas se unissem a Parada de Lucas e Vigário Geral, dando início ao chamado Complexo de Israel. Este foi fundado e administrado por Peixão e avança para algumas favelas dos municípios de Duque de Caxias e Nova Iguaçu, situados na Baixada Fluminense.

De acordo com Costa (2021), os moradores dos referidos territórios receberam uma carta-manual, em que se comunicava a troca de facção e as diretrizes destes que chegam em nome de Deus, devolvendo a comunidade para o morador, desde que eles sejam seus administradores.
Um outro aspecto importante, foi a adoção da bandeira de Israel e a estrela de Davi como símbolo do Complexo de Israel, a partir do marco da conquista da Cidade Alta e adjacências. As demais comunidades conquistadas posteriormente também são identificadas como território simbólico sagrado de Israel no Rio de Janeiro.

Discentes moradores nas comunidades que fazem parte do Complexo relatam diversos casos de intolerância religiosa, tais como: fechamento de terreiros de umbanda e candomblé; expulsão de pais e mães de santo da região; proibição de os adeptos de religiões de matrizes africanas andarem com suas vestimentas, com seus fios de conta, de realizarem suas oferendas; e até mesmo impedimento aos moradores de receberem cestas básicas e quentinhas distribuídas pelos templos de cultura afro-brasileira.
Em suma, vivemos em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural, onde as religiões como a umbanda e o candomblé continuam sendo demonizadas e obrigadas a criar estratégias de sobrevivência para a manutenção da cultura ancestral. E seguimos questionando: quem é do axé pode dizer que é?

 

REFERÊNCIAS

COSTA, Viviane. Jesus é o dono do lugar: o Deus do traficante em disputas territoriais cariocas. Dissertação de Mestrado. São Bernardo Campo, 2021.

OLIVEIRA, Dalila Andrade. “A educação básica na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: breve balanço sobre a organização escolar e o trabalho docente”. In: SOUZA, João Valdir Alves (org.). Formação de professores para a educação básica: dez anos da LDB. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

RIBEIRO, Jakson dos Santos. O ensino de história local na sala de aula: Fontes, objetos e metodologia. Paraná: Editora Atena, 2021.

SANT’ANNA, Cristiano; SILVA, Isadora da. Pensando diferença religiosa no combate ao racismo religioso. Revista Plura, v. 11, n. 1, 2020, p. 128-143.

Site:

Mapa dos grupos armados do Rio de Janeiro – NEV USP. http://nev.prp.usp.br/mapa-dos-grupos-armados-do-rio-de-janeiro Acesso em: 15 de maio de 2023.

 

BRUNA MARQUES CABRAL é doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Membro do Conselho Científico da Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR). Coordenadora Geral do Laboratório de História das Experiências Religiosas (LHER- UFRJ). Professora de História da Rede Municipal de São João de Meriti e da Rede Estadual do Rio de Janeiro. E-mail: brunaclio@uol.com.br