4 Patrimônios suburbanos - Vol. 1 Nº 4 / fevereiro 2024
A memória dos subúrbios cariocas como aprendizagem para os subúrbios paulistanos
Quando a riqueza emerge além das fronteiras estabelecidas pelo cânone, é considerada cafona. O que é comum na Rua Oscar Freire é visto como ostentação na Rua Apucarana. O Jockey Clube de São Paulo já esteve na Mooca antes da mudança para o Morumbi, assim como a elite carioca passou pela Tijuca antes de se concentrar na Zona Sul, cenário das elites tradicionais por meio da paisagem de distinção perante o mundo, sobretudo pelo turismo. Em São Paulo, a hegemonia encontra-se no chamado Quadrante Sudoeste – termo cunhado pelo professor Flávio Villaça, da FAU/USP, nos anos 1990. É a região dos arredores da Avenida Paulista que avançou sobre os entornos do rio Pinheiros – percurso feito pelas elites hegemônicas ao longo do século XX, estabelecendo morada e novas centralidades de perfil financeiro.
Na outra direção, as Zonas Norte e Leste da metrópole ficaram conhecidas como “periferias”, reunindo em um mesmo conceito e entendimento comum extensões enormes de cidade, grupos sociais, modos de vida e contradições de toda ordem. Assim como no Rio de Janeiro, onde as Zonas Norte e Oeste são tratadas como uma espécie de “fundão”, reduto de pobreza e criminalidade, em São Paulo foi construída a ideia de que a Zona Leste representa uma vida difícil a ser superada. É preciso dizer que confrontar o pensamento hegemônico não significa relativizar desigualdades socioespaciais reais, mas reconhecer que os territórios não são homogêneos, como discutido por Maria Paula Albernaz sobre os subúrbios da Leopoldina. Afinal, Penha não é Itaquera e Tatuapé não é São Mateus. Tijuca não é Ramos e Méier não é Bangu. Impossível não pensarmos nas telenovelas que retrataram tantos imaginários envolvendo essas regiões, como Passione (2010) e o remake de Tititi (2011) representando as disputas paulistanas entre o passado operário-industrial e a emergência de novos ricos na Zona Leste, além do controle político e econômico do Quadrante Sudoeste, centrado nos Jardins. E Avenida Brasil (2012), com tantos embates políticos e culturais entre o subúrbio da Zona Norte carioca e a hegemonia do “bom gosto” da Zona Sul, centrada em Ipanema e Leblon. E o que tudo isso tem a ver com memória e patrimônio?
Transformações e preservações não são necessariamente dicotômicas, uma vez que estão submetidas aos processos sociais maiores, sobretudo ao que estiver em voga no momento histórico. Transformar nem sempre é estar ao lado da especulação imobiliária, assim como preservar não significa estar junto de grupos minoritários. Quando se trata da memória e do patrimônio suburbanos, normalmente de menor escala, o enfrentamento por preservar tende a ser duro. Primeiro, por se tratar de grupos com menor poder político. Segundo, porque entre os próprios grupos oriundos desses espaços também existem desejos de transformação, em busca de sofisticação, melhorias no padrão construtivo das edificações e valorização imobiliária, seja por novos empreendimentos privados, seja por infraestrutura pública. A região do Tatuapé pode ser considerada um Calcanhar de Aquiles tanto para o Quadrante Sudoeste, quanto para as periferias. Não é a elite hegemônica do Alto de Pinheiros, mas está distante das realidades periféricas. Então, afinal, o que é? A retomada da categoria subúrbio em São Paulo pode ajudar nessa investigação. E olhar para a experiência carioca é fundamental nesse processo.
Músicas populares costumam ser trilhas sonoras de cenas do subúrbio na teledramaturgia, somando-se aos elementos de construção da ideia do que é ou não subúrbio ao longo da história. Já diria Nelson da Nóbrega Fernandes quando escreveu sobre o rapto ideológico da categoria subúrbio. No Tatuapé, a elite emergente das últimas décadas passou a investir na consolidação da região como centralidade, buscando ofertar não somente edifícios residenciais de luxo, mas também torres de escritórios corporativos. A empreitada, chamada Eixo Platina, paralelo à Radial Leste, busca desafiar a hegemonia da Paulista, da Faria Lima e da Berrini no setor de serviços. Ao mesmo tempo, isso também impacta na memória operária-industrial do século XX. A destruição da Vila João Migliari e a luta por sua preservação marcou as disputas entre transformar e preservar na Zona Leste.
A inauguração do edifício Platina 220, novo arranha-céu mais alto de São Paulo, foi celebrada com shows e queima de fogos de artifício. O Tatuapé rompeu com a hegemonia do Quadrante Sudoeste e mandou um recado para a Faria Lima. O evento se assemelha, em certa medida, às festas de família das personagens Carminha e Tufão em sua mansão no Divino, bairro fictício do subúrbio carioca às margens da Avenida Brasil. Assim como o Divino Futebol Clube, a Mooca vibra com o Juventus e o Tatuapé com o Parque São Jorge (do Corinthians), vizinho ao Clube Esportivo da Penha.
Outra semelhança está no conservadorismo. A concentração de votos em Jair Bolsonaro nos subúrbios cariocas e paulistanos também revela as motivações para transformações que vão além da forma urbana. Recentemente, o não tombamento da Sede do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, no Tatuapé, foi outro caso envolvendo a memória de grupos populares a ser desprotegida. O espaço era anfitrião de eventos de grupos de esquerda na região. A narrativa de confronto entre setor imobiliário e patrimônio passa a ser mais nebulosa e contraditória quando ambos os lados se misturam entre sujeitos suburbanos, com interesses que envolvem moradores de um mesmo lugar. Trabalhar com memória e patrimônio também demanda a identificação e reconhecimento dos novos símbolos construídos e seus significados em torno das disputas pela cidade.