Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2024 • ano 1 • nº 4

4 Patrimônios suburbanos - Vol. 1 Nº 4 / fevereiro 2024

Entrevista

A cultura popular no coreto: entrevista com Charles Costa, membro-fundador do Cine Praça Seca

Allysson Lemos

O tradicionalíssimo bairro da Praça Seca na Zona Oeste do Rio de Janeiro passou, ao longo dos séculos, por distintas formas de se conceber enquanto territorialidade. De terras do Barão da Taquara, viria a ser sub-bairro de Jacarepaguá até alcançar a condição de bairro da Praça Seca nos dias de hoje. Suas ruas fazem homenagem à família do Barão, mas hoje o bairro é conhecido por abrigar grande população periférica que se amontoa nas favelas e morros que o cercam, como as comunidades do São José Operário, da Chacrinha, do Espírito Santo, Bateau Mouche, Jordão, e por aí vai. Quem não é morador do bairro em geral só toma nota dele nas notícias criminais, por conta das guerras entre facções e delas com a polícia.
No entanto, na última década, o bairro viu surgir uma cena cultural organizada por movimentos populares, por fora dos ditames do mercado do entretenimento, fato que minha geração ‒ os que estão na casa dos trinta anos ‒ nunca tinha visto acontecer. A iniciativa provavelmente mais antiga é a da Casa de Cultura Percília Teles, que atende aos jovens da comunidade com aulas gratuitas, realiza eventos musicais e encontros culturais, mas também podemos citar a Roda de Rima, que reúne jovens na comunidade do São José Operário em torno da cultura do hip-hop, e também o Cine Praça Seca, de cuja fundação, em 2019, tive a honra de participar, ao lado de outros companheiros, incluindo o advogado Charles Costa, aqui entrevistado.
Nessas linhas se destaca a valorização do coreto da Praça Seca. Em minha memória, sempre abandonado e depredado, o coreto servia apenas como teto para aqueles sem moradia dormirem. Mas no processo de realização do Cine, descobrimos sua história e o significado que tem para a memória do bairro quando trouxemos um historiador no aniversário de Jacarepaguá. Patrimônio tombado da Praça Seca, hoje o coreto é ressignificado como espaço, em uma apropriação popular, de reunião dos moradores para assistir e debater cinema.
O advogado Charles Costa, além de realizar essa atividade, é um inconformado lutador por melhorias para o bairro. Na entrevista que se segue, ele conta sua trajetória através das movimentações culturais da Praça Seca nos últimos anos.

Charles fala em debate realizado no dia 22/09, em sessão que debatia os autos de resistência.

 

AL: Quando o Cine Praça Seca se formou? Qual foi a motivação para fundá-lo?

Charles: Então, o Cine Praça Seca se forma em 2019 quando alguns amigos, vizinhos da Praça Seca se reuniram para formar uma galera que quer fazer política de outra forma… fazer política dentro de um contexto de cultura, de história da Praça Seca… dentro de um contexto do que a Praça Seca, e o centro da Praça Seca representa para essa comunidade. E aí reúne uma galera que quer trazer essas questões e começa a trabalhar o cinema, porque a Praça Seca é histórica dentro dessas questões de cinema… a Praça Seca era considerada a “Cinelândia da Zona Oeste”… e a gente começa a trabalhar com a ideia de que a gente tinha três salas de cinema, tinha o drive-in do Mato Alto… então, por que a gente não faz um cinema na Praça Seca? Um cine? Pequeno, ok! Mas um cine onde a gente consegue debater questões nossas… ou até botar um filme “de boa” e só conversar sobre o filme?
Então dentro desse contexto, como eu disse anteriormente, a partir de 2019, juntamos duas ou três pessoas, começamos a trabalhar isso e aí, no início, por óbvio, vinham pouquíssimas pessoas – hoje dá uma galera muito maior ‒ e é um evento da Praça Seca, dentro do centrão da Praça Seca e é um negócio muito interessante! Porque… como a gente faz um evento no centro da Praça Seca? Nunca teve isso ali, o que tinha era o Carnaval lá atrás, mas cinema, assistir e debater filmes – independente dos temas que podem ser mais políticos ou não, mas há o debate, e é interessante que haja, até pro pensamento crítico, até pra estimular o pensamento crítico das pessoas…
Para mim é um dos grandes orgulhos em termos de movimentação política da Praça Seca. Eu, que já participei de outras movimentações na Praça Seca na questão dos ônibus, que a gente buscou resgatar as linhas de ônibus do bairro que foram cortadas por conta do BRT, quando foi instituído em 2014, 2015… e o prefeito Eduardo Paes resolveu cortar 54 linhas de ônibus… e desde então a gente resolveu batalhar para que tivéssemos mais ônibus… e a gente fez isso no meio da Praça Seca, no mesmo lugar em que hoje a gente faz o cineclube. Isso pra mim é interessantíssimo, importantíssimo, tem que ser dessa forma… os movimentos sociais, culturais da Praça Seca têm que ser ao público, tem que ser ao povo, não pode ser pago, não pode ser limitante, não pode ser excludente, têm que ser inclusivo, tem que ser um negócio que tenha realmente a população trabalhando… hoje me dá muito orgulho de fazer e é muito importante fazer … hoje tem mais cenários de cultura no bairro, não tinha tanto quando a gente começou, e nós temos diálogo.

AL: As sessões são realizadas no coreto da Praça Seca, que é tombado. Há uma razão particular para fazer lá?

Charles: É um debate muito interessante, é uma pergunta muito boa essa. Por “n” momentos, sendo muito sincero e abrindo muito o jogo do nosso Cine, a galera achou que deveria ser do outro lado, e vou explicar para as pessoas que não conhecem. A Praça Seca era uma só. A Praça Seca era cortada pela rua Cândido Benício. Sendo que a partir de 2014, 2015, teve o BRT. Tem uma estação no meio da Praça Seca, que foi cortada e virou duas praças, a praça da esquerda e a da direita. As duas continuam sendo Praça Seca, mas tipo, um lado é muito ativo culturalmente e o outro lado é morto. Ficam os coroas lá um certo tempo, depois são expulsos – o que eu acho um absurdo porque eles estão jogando o carteado deles, o que é também uma cultura da Praça Seca, eram chamados de ex-pracinhas, que foram pra II Guerra Mundial… nem todos ali eram, né? Mas estão ali… ‒, e aí a gente começou a colocar na esquerda do bairro – no sentido de quem vai pro Campinho ‒, porque é um ambiente histórico, que a gente sempre percebeu que era importante fazer ali. O coreto da Praça Seca veio da Praça XV pra cá… o ambiente da Praça XV, pra quem conhece ali no Centro da Cidade… tinha o coreto que foi retirado e veio para a Praça Seca, e depois substituíram, agora lá tem outro coreto.
Então a gente começou a fazer ali porque é um espaço histórico. É um espaço bom, onde a galera sempre se reunia. Como eu disse na pergunta anterior, tinha o debate sobre o ônibus que a gente fez ali. Até na época do Carnaval, era o espaço que mais acomodava as pessoas. Quem era do bate-bola… era ali no centro da Praça Seca. A Cândido Benício ficava fechada, os ônibus passavam pelos lados. Mas quem era mais família, que não queria consumir esse tipo de cultura, podemos dizer assim, ficava ali pela esquerda. Era o maior barato. Ficavam ali pela esquerda, ali no coreto, e ficavam muito de boa, e era muito bom!
Então a nossa concepção era essa. Pensar o Cine ali no centro, para ser “de boa”, ser acessível para as pessoas, então era fundamental fazer o Cine no meio da Praça Seca! Qualquer um vem, não precisa de renda, de cor, de concepção ideológica ou orientação sexual, as pessoas só iriam! Pra gente é um barato! Até hoje a gente tira fotos e sempre tenta focar o coreto. A gente entra no coreto, pega uma tela e exibe. A exibição é no coreto! A tela fica no coreto e o pessoal do lado de fora assistindo.
Para mim, Charles, isso é fundamental! Ver uma exibição no coreto… toca o meu coração como cria da Praça Seca, como quem viu os cinemas acabarem… eu amo isso!

AL: Existem outras atividades que valorizem o coreto da Praça Seca?

Charles: Não. Que prestigiem, não. Tem outros eventos da Praça Seca, que os caras tentam colocar e tal… uma rapaziada que não é muito ligada à questão da cultura, que é mais ligada à questão da renda, né? Querem ganhar dinheiro. Então, dentro dessa concepção nossa de fazer algo de graça pra galera que não tem a menor… a gente não passa chapéu! Tem gente que acha que tem que passar chapéu, eu não acho que tenha, cultura é cultura! Tem que ser de graça.Mas outro movimento cultural que faça essa valorização do coreto, nenhum!

AL: Eu me recordo que quando o Cine foi fundado surgiram muitos relatos sobre os cinemas da Praça Seca. Você acha que o Cine Praça Seca tem potencial de resgatar essa tradição do bairro?
Charles: Acho que tem. Mas é um trabalho. Só por ser de graça ‒ você só senta e vê o filme ‒ já é um trabalho importante. Sendo que a gente ainda cumpre um outro papel, porque no final do filme há um debate público, qualquer pessoa pode dar sua interpretação do filme. Pra gente que é do cineclube isso é fundamental, por mais que a gente tenha um trabalho de resgatar a história do cinema da Praça Seca, em nenhum dos outros cinemas a gente teve esse momento de passar o filme e fazer o debate depois. Não tem. Pode perguntar aí se no Cine Ypiranga, no Cine Baronesa… nunca teve, era passar o filme, ir pra casa e ficar feliz. Até o drive-in, de repente era um espaço em que as pessoas estavam num carro e debatiam o filme, ou não, não posso dar esse relato. Mas o importante pra mim, enquanto fundador e um cara que ajuda o cine, é que uma galera debate o filme. Isso é fundamental! É histórico na Praça Seca. Se você pensar assim: como vamos fazer história? É dessa forma! Colocar um filme na Praça Seca de forma pública, gratuita, e conseguir debater o filme. Pode ser o “Divertidamente”! A gente debateu uma vez o “Divertidamente”! Não sei se vocês já tiveram a oportunidade de ver o “Divertidamente”, mas é um filme muito interessante pra trocar uma ideia.

AL: Por que é tão histórico para a Praça Seca?

Charles: A Praça Seca nunca teve isso. Tiveram os cinemas da Praça Seca, mas não tinha troca. A gente consegue fazer um cinema mínimo ‒ por óbvio, não temos a menor pretensão de disputar com esses cinemas que tiveram antigamente ‒, mas a gente deu um “plus”. Qual é o “plus”? Debater. Ter um debate da Praça Seca. Sobre os filmes e sobre o território da Praça Seca. E aí é outra questão. A gente sempre traz personagens da Praça Seca pra debater os filmes. Uma vez ou outra a gente não consegue? Sim. No último a gente trouxe um cara de fora. Em outros momentos também trouxemos. Mas a princípio a gente sempre traz gente de dentro para debater o território. E a gente fala “isso aqui acontece na Praça Seca de tal forma” … a galera que tá ali vendo começa a perceber e falar “é verdade!”

AL: Quais são os desafios atuais para o Cine? Que planos têm para o futuro?

Charles: O Cine é um coletivo, que é trabalhado no dia a dia. A gente questiona, abriga, troca uma ideia, bate um papo, as nossas concepções são diferentes. E iguais também. Um consenso é que a gente quer uma estrutura melhor. E dentro disso a gente está tentando trabalhar dentro dos editais da prefeitura, do governo do Estado e do Federal. O Cine é bancado pela gente, pelas pessoas que estão ali. A gente não pede dinheiro de fora. O máximo que a gente tentou uma vez foi vender livro. Então a renda é nossa. Todo mundo suburbano, não tem ninguém rico, playboy, todo mundo trabalha pra viver, e a gente tenta conseguir dentro desse limite orçamentário fazer o Cine Praça Seca, e hoje a gente tenta conseguir uma estrutura melhor, pra ter uma propaganda melhor.
Pra quem não conhece a Praça Seca, é um bairro estilo Zona Norte. Tem uma avenida no meio, e é cercado de favela. Eu fui um moleque favelado, nasci na favela da Chacrinha. Eu vi filme no cinema de rua. Vi um filme dos “Trapalhões” na época, vi esses filmes nos cinemas da Praça Seca. Era uma coisa acessível. A minha família não tinha renda nenhuma e a gente conseguiu entrar e ter acesso àquela cultura. Então a nossa ideia, que a gente consiga no futuro fazer um negócio muito mais acessível do que é hoje. Falar pras pessoas que estão nas casas delas que isso existe na Praça Seca. Porque é difícil… a galera de favela só desce pra levar o filho pra escola, pra trabalhar ou na eleição… dentro disso, é uma coisa muito particular, acho que a galera do Cine concorda comigo, mas não sei, a nossa ideia pro futuro é fazer com que a gente consiga trazer essa galera pra ver um filme. O pobre assalariado, a criançada…
Quando eu era criança, meus pais me levavam ou para a praia, ou pra Praça Seca. Dar uma volta na Praça Seca, comprar uma pipoca. E se a gente conseguir fazer isso para as pessoas… fazer da Praça Seca um cinemão para as pessoas… isso ia ser incrível para mim!

Integrantes do Cine Praça Seca e convidados após a mesma sessão

 

ALLYSSON LEMOS é cientista social, morador da Praça Seca desde nascido, é enxadrista do Jacarepaguá Tênis Club e professor de xadrez, teve atuação no movimento estudantil e participou da fundação do Cine Praça Seca.