Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº2/ 2023

2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023

Artigo convidado

A propósito de um geógrafo inquieto e revelador da espacialidade suburbana: Nelson da Nóbrega Fernandes

Márcio Piñon de Oliveira

Nelson da Nóbrega Fernandes foi um geógrafo que amava as cidades e não gostava de explicações fáceis e ligeiras sobre os seus espaços, em especial sobre os subúrbios. Para ele, as cidades nos falam em suas morfologias, com suas ruas, praças, becos e esquinas, assim como através de sua gente comum, atores principais que produzem os seus espaços e dão vida aos seus lugares.

Natural do Rio de Janeiro, nascido e criado no subúrbio de Cascadura, mais precisamente, no Largo do Campinho, essa era uma marca ou viés do olhar desse geógrafo inquieto e arguto, cuja produção intelectual sobre a cidade nos legou importante contribuição. Este amigo nos deixou, temporariamente, no limiar da Lua Nova de junho de 2014, de tantas turbulências e tribulações em nossas cidades, um ano depois das “jornadas de junho”, que antecederam a Copa do Mundo de Futebol no Brasil.
Nelson da Nóbrega Fernandes (1954-2014), graduou-se em Geografia (1980) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e tornou-se mestre e doutor em Geografia pela mesma universidade. Trabalhou em projetos de pesquisa com os notáveis geógrafos Milton Santos, quando este esteve como professor visitante na UFRJ (1979-1983), e Maurício de Almeida Abreu, referência obrigatória para os estudos urbanos no Rio de Janeiro. Aliás, aprofundei a minha amizade com Nelson em trabalho que realizamos juntos, ainda como alunos de mestrado na Geografia da UFRJ, para o professor Maurício, debruçados na leitura de jornais antigos, nos microfilmes da Biblioteca Nacional, entre os anos de 1984 e 1986, pesquisa essa que contribuiu para a finalização do clássico livro “Evolução Urbana do Rio de Janeiro”, cuja primeira edição foi de 1987 .
Nelson, trabalhou, ainda, como geógrafo, no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), de 1988 a 2003, tendo participado de estudos e pesquisas voltados para a proteção e tombamento de sítios urbanos e outros bens culturais brasileiros. Entre 2003 e 2014, foi professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), no Departamento de Geografia e no Programa de Pós-graduação em Geografia, onde compartilhamos sala e trabalhos de pesquisa.
Dentre muitos dos seus trabalhos acadêmicos – artigos, capítulos de livros e livros autorais e organizados – assinalo os dois que considero mais relevantes como parte de sua contribuição.

O primeiro é o livro que se tornou um clássico nos estudos dos subúrbios carioca “O rapto ideológico da categoria subúrbio: Rio de Janeiro (1858-1945)” . Nele, Nelson realiza importante esforço de desmistificação da categoria subúrbio e do seu uso estereotipado e ideológico na cidade do Rio de Janeiro, e que permeia todo o senso comum, que tem uma representação de subúrbios como um espaço de segunda categoria na cidade, lugares de ausências e precariedades. Ao contrário disso, Nelson recusa-se a aceitar esse emblema e narrativa desqualificadora sobre os subúrbios, quer como distância física do centro, quer como mera periferia social da cidade. Embora justificado academicamente por Soares (1960), como uma persistente e importante nominação dada àquela parte da cidade atendida pelo “trem como meio de transporte, predomínio da população menos favorecida e relações íntimas e frequentes com o centro da cidade” , o ‘conceito carioca de subúrbio’ apresenta-se, no entender de Nelson, como um fenômeno ideológico muito forte e presente, fruto de uma estratégia de desmoralização da classe trabalhadora pelas elites na cidade do Rio de Janeiro.
O segundo é o livro “Escolas de samba: sujeitos celebrantes, objetos celebrados. Rio de Janeiro, 1928-1949” . Nele, Nelson nos revela, por dentro da cidade e sua ordem urbana, a “vitória do samba” através do Carnaval, que, como ele mesmo afirmava, “é a expressão de uma rara vitória dos vencidos que se manifestou em nossas ruas. Percorrer os tempos e lugares do samba carioca nos permite reconhecer a faceta elitista e excludente da formação social brasileira e a violência da polícia para com os pretos, pobres e boêmios, infelizmente ainda atuais. Mas permite-nos também perceber a força da cultura popular, sua capacidade de expressão e de superação das condições mais adversas” (p. 11).

Em 2008, tive a honra e o privilégio de organizar com Nelson, o Colóquio 150 Anos de Subúrbio Carioca, numa alusão comemorativa aos 150 anos da Estrada de Ferro Dom Pedro II – a Central do Brasil – no seu primeiro trecho, entre o Campo de Santana e Queimados, em 1858, marco do desenvolvimento da ferrovia no Brasil e da moderna expansão urbana no Rio de Janeiro. O propósito desse colóquio, que resultaria, dois anos depois, em livro publicado, foi “lançar luz sobre aspectos menos visíveis ou menos (re)conhecidos da geografia e da sociedade dos subúrbios cariocas” através de “um recorte inter e multidisciplinar (…) reunindo pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento” (p. 9). Igualmente buscávamos revisitar, criticamente, “o conceito carioca de subúrbio” para além do fenômeno ideológico que o reveste.
Para Nelson, os subúrbios, como partes, necessariamente, integrantes de nossas cidades, não eram algo dado, nem se resumiam ao significante de suas paisagens. Eram eles, como as cidades, espaços viscerais, intestinos, meandrados, miscigenados, imbricados, híbridos, contraditórios, incontidos e truncados, que escondem mais do que revelam ao primeiro contato. Embora tenha-se uma vontade de potência sobre eles e as cidades como um todo, estes não se submetem as nossas razões e vontades por mais que tenhamos essa presunção e perfeitos sejam os planos e os modelos. Nesse sentido, nunca fazemos deles exatamente o que queremos ou pretendemos, o resultado é sempre algo diferente, e este é o grande fascínio, sabor e mistério do seu estudo.
Em suma, Nelson da Nóbrega Fernandes nos deixa uma importante contribuição para os estudos dos subúrbios cariocas numa perspectiva de pensamento crítico e vivo, marcante pela inquietude e revelação dos seus espaços e sujeitos silenciados ou não tratados pela geografia urbana e outras disciplinas. Com certeza, ele sempre deixará saudades!!!

NOTAS:
ABREU, Maurício de Almeida. Evolução urbana do Rio de Janeiro. 1ª edição. Rio de Janeiro: IPLANRIO/Jorge Zahar Editor, 1987.
FERNANDES, Nelson da Nóbrega. O rapto ideológico da categoria subúrbio: Rio de Janeiro (1858-1945). Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.
SOARES, Maria Therezinha Segadas. Divisões principais e limites externos do Grande Rio de Janeiro. Anais da AGB, v. XII (1958-1959), São Paulo, 1960. p. 197
FERNANDES, Nelson da Nóbrega. Escolas de samba: sujeitos celebrantes, objetos celebrados. Rio de Janeiro, 1928-1949. Rio de Janeiro: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2001.
OLIVEIRA, Marcio Piñon de; FERNANDES, Nelson da Nóbrega (Orgs.). 150 anos de subúrbio carioca, Rio de Janeiro / Niterói, Lamparina / EdUFF, 2010. 255 p.

REFERÊNCIAS:
O rapto ideológico da categoria subúrbio: entrevista com Nelson da Nóbrega Fernandes (VÍDEO)

MÁRCIO PIÑON DE OLIVEIRA é Professor Titular do Departamento de Geografia e Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense.