4 Patrimônios suburbanos - Vol. 1 Nº 4 / fevereiro 2024
A renda diferencial do patrimônio cultural edificado suburbano carioca
A modalidade de rendas do solo capaz de interagir com o patrimônio cultural consiste na renda diferencial, que aparece nos usos mais notáveis do patrimônio cultural edificado, garantindo rendas periódicas aos proprietários. O conceito de renda diferencial do solo refere-se aos atributos diferenciais de construtibilidade e localização dos terrenos para fins de comércio, moradia e indústria e são capazes de aumentar a rotatividade de estoque do comércio, diminuir os custos de produção de moradias e entrelaçar as atividades empresariais da indústria.
Para gerarem rendas, é preciso que o consumo de patrimônio cultural edificado assuma um caráter mercantil, que o binômio ‘solo urbano – espaço construído tombado’ seja apropriado de forma privada e sirva de suporte para uma atividade econômica, encaixada em algum setor de acumulação de capital (moradia, comércio, serviços, produção industrial, reprodução da força de trabalho, consumo de mais valia etc.).
As convenções sociais, as práticas coletivas e os aspectos simbólicos do estoque patrimonial suburbano carioca podem influenciar magnitudes de renda do solo. O tombamento pode valorizar o imóvel, sob determinadas condições específicas e está muito atrelado a uma dinâmica suburbana que valoriza espaços históricos de vivências. Nos subúrbios foram preservadas Igrejas, castelos, mercados, teatros, museus, cinemas, bibliotecas, feiras de artesãos, fábricas, vilas operárias, fortalezas militares, estações ferroviárias, reservatórios, parques, praças, coretos, lonas culturais, clubes, escolas, sobrados, e foram registradas manifestações imateriais das culturas suburbanas cariocas, as práticas, as festas e os rituais, como samba, jongo, baile charme, capoeira etc.
A demanda por patrimônio ou simplesmente o consumo do patrimônio está relacionado à procura por bens culturais patrimonializados e monumentos históricos abertos à visitação, como museus, hotéis, restaurantes, teatros, cinemas, casinos, clubes, parques, mercados etc.
Neste sentido, o estoque de bens do patrimônio edificado suburbano serve de suporte às diversas atividades urbanas que são potencializadas pelo caráter simbólico que o patrimônio confere ao serviço prestado. Dada essa capacidade de emprestar valores aos espaços construídos, tornam-se bens territoriais comuns e aumenta-se a atratividade do consumo desses/nesses espaços. A renda diferencial do solo urbano atribuída ao valor patrimonial, como critério para incremento no preço, ocorre pela capacidade de atração simbólica que esses bens provocam sobre usuários e consumidores, sobretudo em determinadas atividades econômicas que estimulam valores imateriais.
O Mercadão de Madureira apresentado na foto 1 abaixo, sintetiza exatamente esse valor imaterial do patrimônio atribuído a um mercado popular com quase 110 anos de tradição, considerado patrimônio cultural desde 2013, é capaz de estimular a renda da terra pelos ganhos do comércio.
São inúmeros os casos em que as atividades urbanas, desempenhadas em uma localidade cuja comunidade valoriza e cuida do seu acervo patrimonial, se beneficiam de um suporte físico de valor histórico e cultural, em bom estado de conservação para atrair mais clientes, visitantes, consumidores, turistas e moradores. A dimensão simbólica que o patrimônio cultural confere ao espaço construído permite o desenvolvimento de atividades criativas e serviços tradicionais, agregando valor patrimonial e usos complementares às atividades econômicas, como ilustra a foto 2 a seguir.
O reconhecimento do valor patrimonial pela comunidade e sua utilização como suporte à realização das diversas atividades suburbanas (morar, produzir, trocar, atuar, servir, experimentar, expor, hospedar, transportar etc.) estabelece uma série de conexões afetivas entre os indivíduos no território vivenciado. Essa dimensão comunitária do patrimônio enquanto ancoragem para a memória coletiva suburbana depende também do acesso aos recursos monetários e financeiros para a conservação e manutenção do estoque patrimonial.
As famílias e os proprietários de imóveis com leis restritivas por interesse cultural, que esteja sem uso ou muito mal conservada deveria ser objeto de análise pelo poder público municipal. Uma sociedade empobrecida terá certamente mais dificuldades de financiar a manutenção e readaptar os imóveis às necessidades tecnológicas contemporâneas.
Neste sentido, a teoria da renda do solo urbano oferece os conceitos e instrumentos necessários para analisarmos a relação da renda do solo com o patrimônio cultural edificado. As rendas diferenciais do patrimônio cultural edificado devem ser compreendidas se quisermos propor políticas de salvaguarda e de conservação do nosso acervo patrimonial suburbano. Esse debate de identificar rendas a partir dos usos é importante pois pode ajudar a indicar formas de como a sociedade pode utilizar parte do excedente social presente no valor do solo para conservar os bens imóveis urbanos deixados à posteridade.
O que fazer quando a renda da terra é alta o suficiente para justificar a verticalização e o adensamento de uma área, mas há ali um estoque de bens tombados e protegidos mal conservados, servindo de uso para atividades pouco rentáveis ou em arruinamento e sem uso? É necessário pensar instrumentos de proteção e conservação patrimonial de forma integrada, levando em conta as modalidade e magnitudes da renda do solo atrelados ao patrimônio cultural edificado.
Uma forma de abordar esta discussão consiste exatamente em citar o momento em que a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) está sendo implementada pelo novo Plano Diretor do Rio de Janeiro (PD-RJ), sendo excluída a previsão do instrumento da Transferência do Direito de Construir (TDC) como política de compensação e finalidades conservacionistas.
No momento em que há um conflito entre os interesses do mercado construtivo em áreas de patrimônio cultural, possivelmente, pode ser denunciada uma situação de inequidade entre proprietários. Imagine que um comprador interessado busca verticalizar e adensar com a construção de um empreendimento residencial ou comercial em uma área suburbana com casas protegidas por interesse do patrimônio municipal. Um proprietário de imóvel, com restrição construtiva por proteção de interesse cultural, vizinho ao terreno escolhido para verticalização e criação de solo artificial pode se ver prejudicado pela normativa urbanística.
Neste sentido, os conflitos envolvendo os usos do solo, as leis de tombamento municipal e as permissões máximas construtivas se manifestam de forma específica no contexto suburbano. Os usos dos espaços patrimoniais suburbanos são determinados por questões conjunturais, práticas culturais coletivas, convenções sociais e funcionalidades técnicas e além de preservar uma identidade e memória local através dos parâmetros urbanísticos e construtivos que protegem as calçadas, as fachadas dos imóveis, os recuos, os afastamentos e toda relação entre área livre e área construída e um equilíbrio entre os espaços públicos e a propriedade privada da terra.
Referências
BENHAMOU, Françoise. A Economia da Cultura. Ateliê Editorial, Cotia-SP, 2007.
_________________________. A Economia do Patrimônio Cultural. Livraria SESC SP, São Paulo-SP, 2016.
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