Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Artigo convidado

Alegorias suburbanas

Frank Andrew Davies e Roberta Sampaio Guimarães

Quem é do Rio de Janeiro sabe que o “subúrbio” não pode ser entendido apenas de modo geográfico, a partir da simples definição de local afastado do Centro da cidade. A força do termo encontra-se no acionamento de uma multiplicidade de sentidos, identidades e práticas socioculturais e abarca um amplo imaginário mediado por jornais, filmes, programas televisivos e livros. Em uma rápida mirada pela produção cultural recente, percebemos como o subúrbio e seus moradores costumam ser caracterizados. 

Produções como os filmes Os suburbanos (Luciano Sabino, 2022) e Um suburbano sortudo (Roberto Santucci, 2016), a peça teatral Os suburbanos (Rodrigo Sant’Anna, 2005) e os programas televisivos A grande família (Rede Globo, 2001-2014) e Zorra total (Rede Globo, 1999-2015) podem, à primeira vista, suscitar aspectos cômicos. Mas elas também veiculam uma série de imagens do subúrbio como associado à sociabilidade calorosa encontrada no futebol, no samba, no catolicismo popular, nos bares, nos carnavais de rua, nos bares e mesmo no trem. Do mesmo modo, contudo, essas produções mobilizam outras tantas referências negativas, apresentando seus moradores como cafonas, grosseiros ou ingênuos. 

Certo é que trata-se de uma categoria social capaz de articular valores morais. Assim, nos estudos acadêmicos, o subúrbio carioca também tem sido alvo de diferentes sentidos. Foi como invenção de uma “alteridade próxima”, para usar a feliz expressão de Mariza Peirano (2000), que pesquisadores buscaram operá-lo em textos e registros. O que demonstra que as realidades multifacetadas e fluidas associadas a seus espaços e modos de vida são uma potente fonte de imaginação sociológica. 

Retomamos aqui, em breves linhas, algumas ideias que desenvolvemos no artigo “Alegorias e deslocamentos da categoria subúrbio carioca nos estudos das ciências sociais (1970-2010)”, publicado em 2018. Inspirados nas observações do antropólogo James Clifford (2011), ensaiamos entender esse corpo de estudos como construtor de alegorias sobre a cidade, tanto por seu conteúdo quanto pelas formas poéticas de textualização às quais recorreram. Então nos colocamos a pergunta: por que pesquisadores variaram tanto na atribuição de conteúdo e forma à ideia de subúrbio carioca? 

Um caminho interpretativo dessa multiplicidade foi compreender tais textos como indexados a determinadas linhas de pensamento acadêmico que se difundem, se consolidam e se dissolvem nos centros de pesquisa. Outro foi mapear as escolhas éticas e ideológicas dos próprios pesquisadores e analisar como suas estratégias textuais buscavam conferir significados transcendentes aos eventos observados.  

Desse modo, encontramos como mito de origem da noção de subúrbio carioca os estudos desenvolvidos nas décadas de 1950 e 1960, quando geógrafos conceituaram a categoria a partir de uma gramática da luta de classes, que enfatizava aspectos materiais como a expansão dos transportes de massa e a precariedade de infraestrutura urbana nas partes Norte e Oeste da cidade. De lá para cá, outras caracterizações foram formuladas, relacionando o subúrbio carioca a grupos e subgrupos com estilos de vida específicos, como os funkeiros, os punks e os pagodeiros. Ou, como nas últimas décadas, vinculando suas práticas a uma agenda pública voltada para o combate à “desordem urbana” e à legitimação de políticas que supostamente integrariam os opostos dos “urbanos/civilizados e suburbanos/marginalizados”. 

Atualmente, identificamos um modo emergente de significar o subúrbio carioca a partir do interesse pelo acionamento da categoria pelos próprios “suburbanos”, em situações em que se apresentam perante outros moradores e mediadores da cidade em busca por reconhecimento social, superação de estigmas e disputa de recursos econômicos e políticos. Desse modo, os textos produzidos sob essa perspectiva enfatizam não mais o encontro entre alteridades, mas os múltiplos agentes e estratégias retóricas operados na classificação dos espaços urbanos. 

Indicamos, assim, a potencialidade dessa produção textual em confirmar, negar e subverter fronteiras físicas e simbólicas da cidade, ressaltando que os pesquisadores também atuam politicamente ao nomear coisas e pessoas. Logo, além da reflexão sobre os agenciamentos urbanos e as relações de poder que produzem socialmente os espaços urbanos, indicamos a necessidade de nos indagarmos, como investigadores, sobre as políticas e poéticas que construímos através dos nossos textos. 

Façamos então como James Clifford. Percorramos os textos sobre os subúrbios cariocas como quem busca por alegorias e suas afirmações. Talvez assim possamos explicitar as percepções que orientam nossas escolhas narrativas. Ou ao menos, nos faça mais conscientes sobre como tecemos nossos relatos sobre os “outros” e sobre “nós”, a partir dos desejos que os interligam. Que os subúrbios cariocas vindouros desses encontros se façam não apenas plurais, como também um meio de acesso a fatos e alegorias, ao real e ao imaginado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Clifford, James. (2011). “Sobre a alegoria etnográfica”. In: José Reginaldo Santos Gonçalves (org.). A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Edi- tora UFRJ.

Guimarães, Roberta ; Davies, Frank (2018). “Alegorias e deslocamentos do ‘subúrbio cario- ca’ nos estudos das Ciências Sociais (1970-2010)”. Revista Sociologia e Antropologia, 8: 457-482.

Peirano, Mariza. (2000). “A antropologia como ciência social no Brasil”. Etnográfica, 4/2: 219-232.


*Em 2020 os autores deste artigo produziram um vídeo refletindo este tema, a partir dos depoimentos dos pesquisadores Ana Paula Ribeiro, João Felipe Brito, Livia Abdalla e Sandra Carneiro. Cf. CIDADES. Possíveis subúrbios cariocas: políticas e poéticas contemporâneas (16/11/2020). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UI- GzJivH7_4&t=4s&ab_channel=CidadesUERJ>. Acesso: 01 jul. 2023.

Frank Andrew Davies é professor adjunto do Departamento de Turismo e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É pesquisador do Cidades - Núcleo de Pesquisa Urbana da UERJ. Roberta Sampaio Guimarães é professora adjunta do Departamento de Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). Coordena o NESP - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Espaço, Simbolismo e Poder