2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023
As águas encantadas da Baía de Guanabara
(Livro de Jorge Luiz Barbosa, Diogo Cunha, Ana Thereza de Andrade Barbosa)
É um livro caprichado e encantador, ilustrado com muitas fotos históricas, baseado em pesquisas de arquivos e estudo bibliográfico extenso e de respeito. Mereceu, com propriedade, apoio da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, pela Lei de Incentivo à Cultura, de 2013.
Visa “retirar do esquecimento uma vasta extensão do litoral da Guanabara”, resgatando imagens e histórias de praias aterradas. Você sabia que bairros dos subúrbios cariocas foram resultado de aterros do espelho d’água da baía, desse “guajupiá,” paraíso tupinambá que significa lugar idílico? São enseadas, praias, ilhas, lagoas e manguezais hoje aterrados onde se iniciou um conviver pioneiro do carioca com o mar. Foi para mim uma leitura arrebatadora e também de tristeza pelos horrores que nossos antepassados perpetraram contra a baía e suas gentes.
Você sabia que Inhaúma era uma enseada, o chamado “Mar de Inhaúma? Que havia o Saco de São Diogo, estuário dos rios Comprido, Maracanã e Catumbi? Toda essa região foi aterrada para formar a Cidade Nova, depois a Praça Onze (hoje parte da Av. Presidente Vargas)! Ancoradouros e cais desapareceram com o desmonte do Morro do Castelo: cais de São Tiago, da Alfândega, dos Mineiros; praia do Mercado dos Peixes, praia de Dom Manuel, enseadas da Prainha, da Saúde, da Gamboa. Havia a praia do Valongo, do Alferes, praia Formosa, praia de Santa Luzia (antiga praia da Piaçava). Havia a praia de São Cristóvão, a praia da Conceição, a praia do Caju, tudo aterrado para formar o Cais do Porto (Santo Cristo, Av. Francisco Bicalho. A praia das Virtudes deu lugar às pistas do Aeroporto Santos Dumont. Na praia do Boqueirão, entre 1870 e 1904, havia uma certa madame Dordeau, que inaugurou casa de banhos com café da manhã! “Pulmões iodados, face fresca, leite fumegante, brioches tenras, jornais desdobrados, festa ao ar livre, barulho de xícaras batendo nos pires” (citação de João do Rio). Fac-símiles de revistas de época mostram as brincadeiras de banhistas na praia de Santa Luzia, em 1918!
Nessas praias desaparecidas havia clubes náuticos, carnavais à fantasia, convívio com o mar muito antes do surgimento da Zona Sul hoje celebrada. Segundo os autores, foi com Pereira Passos o início da ocupação das “praias bravias do litoral oceânico” com o que então chamou de “subúrbios-jardins”. Como se depreende, não havia então conotação pejorativa para a palavra subúrbio.
Mais que isso, nas águas desaparecidas trabalhavam o que os autores chamaram de uma “Baía Negra”: marujos, pescadores, ex-escravizados que comandavam embarcações que faziam o transporte fluvial em rios hoje canalizados e assoreados. A tradicional Festa da Penha iniciou-se em um ancoradouro que lá havia!
Entre 1939-44 abriu-se a variante Rio – Petrópolis, hoje Av. Brasil. Segundo o Álbum da Av. Brasil, consultado, era a “conquista da Natureza para abrir caminho ao Progresso”. Seria fator de saneamento de região pantanosa. Acabou com as ilhas do Pinheiro, Bom Jesus, Catalão, Fundão, Cobras, Baiacu, Campembe, Anel, Raimundo, Santa Rosa, Comprida, embora, ainda segundo o álbum, se destacassem os prazeres de uma viagem costeando o mar.
Elmo Amador, citado por seus dois livros seminais sobre a Baía da Guanabara, calculou o quanto se perdeu de espelho d’água entre 1550/1997): cerca de 21.621km2!
Vale ainda lembrar a comparação crítica que os autores tecem entre o trato caprichado dado às áreas aterradas do Flamengo, Glória, Botafogo, com parques bem planejados e belo paisagismo e as áreas de mar soterradas na Zona Norte para uso industrial. Imaginem o Rio hoje e seus subúrbios, se mantidos intactos suas praias e rios. Sem o sucumbir ao rodoviarismo e seus aterros e retas! Nossos antepassados não atentaram para a originalidade e beleza de uma cidade feita de morros, rios, praias e enseadas.
Enfim, concluímos com a frase de Luiz Antonio Simas, que prefacia o livro: “o que temos são relatos sobre um litoral carioca, suburbano, que sucumbe ao peso de uma disputa pela memória que sistematicamente apaga a cidade que não é cartão postal”.