1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023
Campo Grande, memórias de marcos culturais
Neste momento em que escrevo ‒ tarde de 21/6/2023 ‒ está sendo sepultado o Zeca do Trombone (José da Silva), um dos maiores músicos do país.
Lembrar-me do Zeca, me faz lembrar do Serginho Trombone, outro grande músico, falecido em 2020, também em plena atividade. Mas, fundamentalmente, estas lembranças me levam de volta a Campo Grande ‒ onde morei desde a infância (década de 1950) até o início da idade adulta ‒ subúrbio do Rio de Janeiro, que é pródigo em talentos atuantes nas várias artes, entre os quais esses dois espetaculares trombonistas. E, por óbvia extensão, lembro-me de que meu pai exerceu alguma influência no desabrochar de um desses talentos musicais.
O menino Sérgio morava na Rua João Teles. Nossas residências, distantes entre si em poucas centenas de metros, eram separadas pela linha do trem. Em certos dias da semana, eu cruzava a linha férrea em direção à casa dele, onde dona Irene, sua mãe, me alfabetizava; e ele atravessava em sentido oposto, para minha casa, na rua Taquarembó, a fim de receber os primeiros rudimentos de teoria musical e trombone, ministrados por meu pai, Nilton Fagundes Bulhões (o “Fagundes”, nas fileiras dos músicos profissionais do Rio de Janeiro). Zeca morava mais distante, no Bairro Diana, e recebia os ensinamentos de outra figura importantíssima na formação de inúmeros futuros profissionais da música: Rubem de Faria, o “Maestro Rubem”, cujo rigor e severidade no trato com seus alunos tornaram-no uma lenda naquele lugar.
Campo Grande instala-se na então chamada Zona Rural, denominação substituída por Zona Oeste, quando da passagem da Capital Federal para Brasília.
Um grupo de rapazes e moças campo-grandenses, apaixonados por música e artes cênicas, criou, em 1952, o Teatro Rural do Estudante, fundamentado na ideia de que: “As populações rurais devem participar, na medida do possível, da vida cultural e artística do país”.
O movimento do Teatro Rural do Estudante procura despertar valores artísticos e humanos, estimulando-os, dentro de um espírito de responsabilidade, à realização de uma obra comunitária. (cf. 042949_1546562462.pdf (museusdoestado.rj.gov.br)
Nesse ambiente, as atividades de Herculano Carneiro e seu irmão Danilo, de Rogério e outros membros da família Fróes, de Dineyar Valente Plaza, de Regina Pierini, dentre outros jovens artistas daquele subúrbio, acabaram atraindo a atenção da engenheira Elza Pinho Osborne. Ela estava responsável por obras de grande vulto naquela área, como o Viaduto Alim Pedro (hoje chamado de “viaduto velho”), que passa por cima da via férrea e faz a ligação entre a Estrada Rio do A e a Estrada do Monteiro. Mas a “Doutora Elza” também era uma artista. Além das capacidades de cálculos matemáticos, escrevia peças teatrais. Sua adesão à causa provocou, também sob sua responsabilidade, a construção física do espaço que passou a ser chamado Teatro de Arena, ao lado do viaduto, cuja pedra fundamental foi lançada, em 1956, pelo então Presidente Juscelino Kubitschek.
Por iniciativa do Teatro Rural do Estudante, Campo Grande e outras áreas da Zona Oeste do Rio de Janeiro abrigam trabalhos do artista plástico gaúcho Miguel Pastor ‒ busto de Paschoal Carlos Magno; obelisco em honra a Alim Pedro; busto de Arthur Azevedo; monumento ao Preto Velho… ‒ e do arquiteto franco-brasileiro Affonso Reidy (criador de projetos de vulto, como o do Museu de Arte Moderna, no Centro do Rio) ‒ projeto do prédio anexo ao Teatro de Arena (obra não concluída), onde funcionaria o Teatro Laboratório.
A ideia fundamental do Teatro de Arena, mantida desde o Teatro Rural do Estudante, obviamente não agradou às autoridades militares que governaram o país. O teatro ‒ já então chamado Teatro de Arena Elza Osborne ‒ ficou fechado durante aquele período de governo, retornando às atividades em 1986, por iniciativa de Ives Macena e Regina Pierini. O formato “arena” (espaço descoberto) tornou-se ultrapassado. Macena lançou campanha para conseguir cobertura. A solução veio em forma de doação de uma grande lona, sobra da arquitetura da Eco-92, criando-se a Lona Cultural Elza Osborne, fato gerador da construção das Lonas Culturais que se espalham pela Cidade do Rio de Janeiro.
Campo Grande foi polo produtor de laranjas, mas patrimônios físicos se instabilizam pelas oscilações da economia e da política. O patrimônio imaterial é perene. Em nossas memórias mantém-se o valor de todos aqueles que contribuíram para que a Arte seja um dado fundamental na existência daquele subúrbio carioca.