Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Artigo

Cosme e Damião: dos irmãos médicos à resistência mirim suburbana

Flávia Figueiredo

Passageiro de carro entregando saquinho de Cosme e Damião a criança no Méier – 27 de setembro de 2021/ Acervo da autora

Por definição do minidicionário Aurélio, o termo socializar significa: “[…] 2. Por sob regime de associação. P. 3. Tornar-se sociável.”. Por sua vez, sociável é: “1. Que se pode associar. 2. Que gosta da vida social”. Para que haja a instituição dessa vida, a premissa básica é a existência do contato interpessoal, podendo ocorrer tanto no espaço público quanto no espaço privado.

O tecido social, construído pela população dos subúrbios do Rio de Janeiro, é um dos pontos mais marcantes, tanto da cultura suburbana como da cultura popular carioca, sendo produzido e identificado nas ruas e calçadas. Isso porque este tecido é formador de identidades dos subúrbios cariocas, quando nos vemos projetados e representados nas ruas, na cultura, na história, nos comércios, nas arquiteturas. Por haver identificação do indivíduo para com o espaço público, há uma espécie de “autorização” para se apropriar desse espaço, por nos entendermos como agentes passivos e ativos do processo de formação e ativação dos locais coletivos. Essas identidades cumprem o papel de nos definir como elementos únicos em meio à cidade, e nos unem como suburbanos através do reconhecimento das práticas sociais comuns a muitos de nós.

Apesar de estarem em processo de extinção em muitas partes da cidade, essas sociabilidades das ruas ainda podem ser observadas nos subúrbios cariocas, em diversas manifestações, desde os botequins até as rodas de samba, mas a que mais me toca atualmente é a celebração de São Cosme e Damião, anualmente na data de 27 de setembro. Digo isso pelo fato de muitas tradições sociais iconográficas dos subúrbios — cadeiras nas calçadas, futebol de rua, conversas à beira do portão — estarem desaparecendo à medida que há uma escalada da violência urbana, uma usurpação da rua pelo automóvel e um sequestro tecnológico de nós mesmos para dentro de casa.  Apesar da crença que a tradição de Cosme e Damião esteja morta e enterrada, há um espanto entre os “estrangeiros” que percorrem as ruas das Zonas Norte e Oeste e constatam que a tradição permanece vivíssima e continua a arrastar crianças, pais, mães, avós e tantos outros.

A data da celebração se refere ao dia das execuções fatais de Cosme e Damião, perseguidos pelo Império Romano. Suas histórias têm paralelos em outras culturas: na mitologia grega, com os gêmeos Castor e Pollux, filhos de Zeus; na mitologia iorubá, base das religiões de matriz africana, se assemelham aos Ibejis, os orixás dos filhos gêmeos de Iansã e Xangô, símbolos da alegria e protetores das crianças; no catolicismo, são os irmãos médicos que curavam sem cobrar por tal. No Brasil, tornaram-se protetores de médicos e farmacêuticos.

Em nossas terras tropicais, o sincretismo religioso tornou a festa comum tanto aos católicos quanto aos umbandistas e candomblecistas. Destes últimos fiéis nasceu a relação dos santos com as crianças (associando-os aos Ibejis), e a prática de distribuir doces à elas, em retribuição ao pedido atendido – mas a realidade é que muitos distribuem os doces por tradição pessoal e não, necessariamente, como símbolo de gratidão.

A presença das crianças é notável: as ruas são tomadas pela atmosfera da infância, em qualquer idade, cabendo a associação de um “carnaval infantil” pela intensa festividade. Este é, também, considerado o pior dia para dirigir, pois se a prioridade usual de fluxo é dos veículos, no dia de Cosme e Damião, a preferência é dos pequenos. Motos, carros e ônibus, abrem passagem para a festa das crianças, que correm para conquistar os doces, sem temer os perigos! A resistência mirim se faz presente e mostra como a festa popular ainda é capaz de se sobrepor às tecnologias e aos muros protetores, criados pelos apavorados urbanos.

As estratégias para conseguir os saquinhos são duas: nomadismo e sedentarismo. Umas estabelecem um ponto de permanência; outras circulam por ruas que são conhecidas pela distribuição de doces. É preciso estar atento, pois aonde menos se espera, pode haver distribuição de doces: em uma vila de casas, em um carro estacionado, através de uma pessoa andando com um saco grande… todos são potenciais distribuidores. Independentemente da estratégia, nômades e sedentários eventualmente se encontram pelo caminho e a festa é feita na passagem do saquinho, de uma mão a outra.

Recentemente, sugiram novos modismos para a data, como o “saquinho light”, substituindo a maria-mole e a paçoca por bala de alga e brigadeiro de biomassa de banana, ambos mais saudáveis – saudáveis para o corpo, pois qualquer alma padece com guloseimas desta categoria. A novidade não vingou, e os doces tradicionais continuam a ditar o tom da festa. Há também aqueles que “terceirizaram” o pagamento da promessa, ao comprarem os saquinhos já prontos, com a justificativa de “falta de tempo”. Me pergunto quantos pedidos os santos recebem e atendem diariamente, e o sujeito vem com a desculpa de não poder reservar um mísero dia para agradecer o pedido concedido através da montagem dos saquinhos! Fosse eu os santos, revogava a benesse oferecida para que o indivíduo pagasse a promessa de forma decente.

Dos populares pirulitos e chicletes até os não tão queridos (mas emblemáticos) doce de abóbora e “cocô de rato”, as crianças povoam as ruas, acumulando dezenas de saquinhos em sacolas de mercado ou mochilas. Livres dos preconceitos adultos, buscando somente a plena diversão da conquista dos doces, os pequenos circulam e preenchem a cidade e os subúrbios cariocas, envolvidos pela atmosfera pura e alegre dos Ibejis e protegidos dos perigos da vida moderna por São Cosme e São Damião, nos lembrando do nosso resistente modo de vida deste lado do túnel.

Flávia Figueiredo é arquiteta e urbanista formada pela PUC-Rio, colaboradora técnica do LObE-Hab do DAU PUC-Rio e sócia-fundadora do Estúdio Cafi, escritório de arquitetura e interiores. Desde a graduação, se dedica à refletir e estudar os subúrbios do Rio, em especial a região do Grande Méier.