Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Trajetórias de Coletivos

Travessias: do engajamento estudantil à educação popular nos subúrbios

Etel Oliveira

Sou cria do subúrbio. Durante boa parte de minha infância morei em Madureira, partilhando de momentos alegres e festivos em uma família de afrodescendentes provindos do Vale do Paraíba, em Minas Gerais. Foram bons tempos: brincadeiras na rua, pés descalços e  vizinhança amigável. Com os amigos, primos e primas brincávamos de tudo, inclusive de panfletar nas eleições. Nessa época, já dava sinais de um interesse que me serviria de base para formação de uma consciência sociocultural fundamental, sendo útil, anos depois, como norteadora pedagógica no contexto escolar.

No fervor da adolescência, enquanto estudante do Ensino Fundamental, entendi que poderia reivindicar direitos, e notei o quão importante era participar das decisões coletivas como representante de turma; e assim o fiz durante alguns mandatos. Isso potencializou ainda mais habilidades de articulação e de empreendimento. Mas assumir esse papel não foi fácil tarefa. Embora minha relação com a escola em todos os segmentos tenha sido boa, mesclando formação em escolas públicas e privadas, enfrentei situações que hoje denominamos como bullying. Nas escolas por onde passei – a maioria delas situadas no subúrbio – sofri as consequências duras do racismo institucional e estrutural que permearam e me vitimaram durante a infância e a adolescência. Porém, nada disso me paralisou.

Hoje entendo que a vontade de atuar como educadora está intimamente ligada ao passado, quando brincava de professora com meu irmão mais novo e meu primo. Uma vez ouvi na graduação de Pedagogia que nos tornamos professores pelas relações de afetos positivos e negativos que tivemos ao longo da nossa formação. Ao ouvir isso, minha memória veio à tona como se fosse um filme. Vieram todas as minhas referências escolares, desde a antiga Classe de Alfabetização até aquele dia, enquanto aluna de um curso de graduação. Foi então que entendi finalmente o meu papel na educação.

A atuação em sala de aula começou com um projeto de capacitação profissional para  jovens e adultos no programa do governo, o PROJOVEM. Mas a maior aventura foi aceitar coordenar professores e alunos em um núcleo de pré-vestibular social da EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes – no Parque Madureira. A possibilidade de atuar em Madureira, no lugar ao qual me sinto pertencente, e poder unir o desejo de orientar jovens para entrar na universidade me deixou em êxtase. Foi uma maravilhosa experiência que durou dois anos e rendeu frutos com alunos inseridos em qualificadas instituições de ensino público, no Rio de Janeiro e no Espírito Santo, como também em universidades particulares como FGV e PUC  como bolsistas de um programa de parceria com a EDUCAFRO.

Com a minha atuação no núcleo recebi um convite para compor a equipe do NICA Jacarezinho – Núcleo Independente Comunitário de Aprendizagem – localizado no bairro do Jacaré.

O Núcleo, formado por jovens graduandos e graduados, promove a possibilidade de entrada de jovens pretos e pardos nas universidades, comprometidos com a formação política e sociocultural, rompendo, através da educação, com as expectativas de pobreza.

O novo desafio: atuar na favela considerada mais preta e uma das mais violentas do Rio de Janeiro, onde aconteceu uma chacina bem recente e que hoje recebe atenção do Estado com uma intervenção policial. Com índices graves de doenças respiratórias devido à pouca circulação de ar entre as casas e com precariedade no saneamento básico para uma população a cerca de 80 mil habitantes, coloca o Jacarezinho em números alarmantes de calamidade pública.

Fachada do prédio do NICA Foto de Etel Hedwiges

Etel com a equipe do NICA 2023 (acervo pessoal)

E o que nos toca diretamente enquanto educadores populares e ratifica o nosso trabalho nesse território é o número ínfimo de escolas para a quantidade de crianças e jovens moradores da região e o elevado quadro de evasão escolar criando um abismo para entrada nas Universidades. Apesar disso, o público do pré-vestibular continua sendo oriundo das escolas públicas de ensino médio distantes da favela e de bolsistas de escolas particulares.

O meu compromisso junto à equipe é provocar os estudantes  a respeito dos direitos e deveres tais como, direito ao lazer, à cidade, à participação cidadã em sua plenitude. As atividades externas, como aulas públicas, idas ao teatro e ao museu, compõem  o calendário do ano letivo do pré-vestibular, complementando a formação cultural do programa pedagógico do NICA. Enquanto pedagoga e educadora popular, me empenho diariamente de forma aguerrida a estimular mudanças na vida de cada indivíduo que encontro nos espaços de aprendizagem e sigo acreditando que a educação no espaço informal é capaz de desenvolver integralmente  à medida que esses jovens compreendem o seu lugar no mundo.

 

Postagem sobre o impacto da educação para mulheres faveladas

ETEL OLIVEIRA é  pedagoga, educadora popular e jornalista, articuladora de projetos sociais e culturais. Mulher do Axé, Coordenadora Pedagógica e Administrativa do NICA Jacarezinho, Membra do Laboratório de Memórias de Relações Étnico-raciais na formação de professores - Labmere- ISERJ