Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Depoimento

Memórias de uma infância de subúrbio: a dura e decisiva batalha da educação

Jubdervan Viana da Costa

A possibilidade mais efetiva de melhoria das condições de vida e do exercício pleno da cidadania dos suburbanos filhos da pobreza, neste país de desigualdade abismal, é a educação. Pode-se dizer que este ou aquele se destacou através do seu talento no futebol; ou que sua arte em representar, compor ou cantar, o fez despontar no teatro, na tv ou na música; ou que uma excepcional habilidade para o comércio e os negócios o fez progredir e se consolidar em bom padrão social. Mas, em qualquer caso, terá sido uma gota no oceano, um exemplo raríssimo, um caso em milhares.

Os anos 1960 foram um tempo de ampliação de parte da educação fundamental. Muitas escolas públicas foram abertas naqueles anos, de modo que não faltavam vagas para o curso primário.

Havia um processo de mudança, no qual na minha família seria um padrão. Sou o caçula de uma turma de onze filhos nascidos e oito criados, já que três irmãzinhas faleceram ainda bebês ou logo nos primeiros anos de vida. Os cinco mais velhos estudaram em escola rural, uma criação de duas ou mais décadas anteriores e que consistia basicamente em ensino agrícola, ou seja, plantar e colher, sendo o objetivo de aprender a ler, escrever e contar quase um resultado secundário ou acessório. Este modelo, ao que parece, vem do período em que o subúrbio era considerado um espaço ainda não densamente povoado entre o urbano (centro histórico e suas cercanias) e o rural, área de fazendas para a produção ostensiva de alimentos e matérias primas (algodão, por exemplo) e criação animal. Se o subúrbio era, então, o lócus da produção de alimentos para a cidade, o sistema educacional era preponderantemente o treinamento para realização do ofício.

É de se registrar que havia no meio familiar um não consenso sobre o valor da educação formal na vida dos filhos. Meu pai, por exemplo, dizia explicitamente que deveríamos frequentar a escola primária com disciplina e dedicação para aprender a ler e escrever adequadamente, mas a partir daí deveríamos nos dedicar ao trabalho para ajudar a sustentar a família. Minha mãe sonhava alto com o desempenho escolar dos filhos. Falava que deveríamos estudar para sermos doutores ou então militares de alta patente. Acompanhava com atenção e, às vezes, fazia um esforço hercúleo para continuarmos estudando. Quando meu irmão, sete anos mais velho que eu, não logrou passar no concurso para o ginásio público, ela bancou, a contragosto de papai, a matrícula e as pesadas mensalidades do ginásio particular até que, no ano seguinte, meu irmão passou no processo seletivo para as poucas vagas abertas para a segunda série do curso ginasial.

Foto na 1ª escola (acervo do autor)

O ensino ginasial começava a se expandir, mas ainda muito lentamente, de forma a permitir que somente alguns de nós pudéssemos dar continuidade aos estudos nesta passagem que era um gargalo terrível e que barrava a maioria.

A dificuldade de acesso aos ginásios públicos era tão grande que muitas famílias pobres aceitavam, ainda que sofridamente, a conclusão do ensino primário como um desempenho aceitável de desenvolvimento educacional de seus filhos. O concurso de admissão ao ginásio era quase um vestibular dos dias atuais. As provas eram difíceis para os alunos das escolas públicas, que constituíam a esmagadora maioria, de modo que os aprovados, se tanto, representavam 1/3 dos concluintes do curso primário. Os ginásios particulares cobravam mensalidades caras para os padrões de vida médio das famílias, sendo então acessíveis a poucos e ainda assim, na maioria dos casos, de pior qualidade que os públicos.

Portanto, havia evidências de que, para muitos, boa parte do sucesso ou fracasso na vida escolar seria jogada no momento de admissão ao ginásio, ali, no ano de conclusão do curso primário ou, no máximo, no ano seguinte, para quem conseguisse pagar um curso preparatório ao concurso de admissão. Nos limites geográficos de Bangu, havia, então, uma única unidade pública de ensino oferecendo o curso ginasial, o Colégio Estadual Professor Daltro Santos, uma escola tradicional na região e que gozava de bom conceito. A rede privada, por sua vez, era formada por seis a dez estabelecimentos.

O final do ano de 1966, aos onze anos, foi o meu momento de enfrentamento deste difícil obstáculo. Até poderia arrefecer minha ansiedade e reconhecer que era o caçula temporão de uma família de muitos filhos, em que o irmão imediatamente mais velho já estava com dezesseis anos, o seguinte com dezoito, servindo ao Exército e os outros já trabalhando regularmente e que, dessa forma, se fosse necessário, a família faria um esforço para pagar uma escola particular para eu estudar no ginásio, pelo menos por uns tempos.

Gostava de pensar que a situação financeira do grupo familiar, naquele momento, poderia ser sintetizada na frase: as vacas ainda eram magras, mas de suas tetas saiam um pouco mais de leite. Contudo, a realidade era mais complexa: Primeiro, precisava daquela vitória difícil para conquistar a autoestima capaz de me impulsionar com ímpeto em projeto ambicioso de desenvolvimento estudantil. Segundo, a melhoria das condições econômicas da família não era tão estável. Isto porque, quando os mais velhos começavam a trabalhar, passavam sim a contribuir financeiramente para a família, o que provocava um alívio nas contas. Contudo, com frequência, o membro adulto logo se casava e sua bem vinda contribuição cessava.

Então, não podia me deixar iludir: o mínimo de segurança que precisava para avançar nos estudos era, naquele momento, ser aprovado no concurso de admissão e me matricular num ginásio público. Para tanto, contei com a santa ajuda de duas mulheres espetaculares: a minha mãe e a Dona Célia; esta, professora da última série do curso primário na Escola O’Higgins. As duas organizaram um sistema de reforço de estudos para o concurso de admissão, com o qual a generosa professora gratuitamente duplicava seu turno de trabalho dando aulas à tarde, na copa da minha casa, para um grupo de oito a dez colegas ansiosos por conseguirem um lugar ao sol naquele momento crítico da vida escolar. Minha mãe oferecia a infraestrutura de mesa e cadeiras e o suporte, oferecendo um lanche no meio da jornada de estudos.

O resultado dessa empreitada foi muito bom, mais de dois terços de nós conseguiram entrar no curso ginasial em colégio público, o dobro da expectativa normal de resultado. A par disto, uma derrota muito sentida para os dois colegas que, talvez por nervosismo no dia da prova, não lograram conquistar uma vaga naquele momento.

O dia que tomei conhecimento da minha aprovação foi muito especial. Com a minha mãe ao lado, procurava nas listagens em ordem alfabética afixadas no mural no pátio do colégio, quando avistei a linha do meu nome e nas três colunas seguintes, respectivamente, nota em Matemática: 7, nota em Português: 6 e Resultado: Aprovado. Minha mãe sabia ler e escrever, mas por temer ser traída por aquelas folhas datilografadas com tantos nomes e números próximos, mandou que eu lesse de novo acompanhando com o dedo a linha do meu nome.

Após a confirmação, minha mãe, sempre tão discreta nas demonstrações de contentamento, curvou-se ligeiramente e me abraçou com força e longamente. Fiquei felicíssimo: Em primeiro lugar, por óbvio, por vencer em momento tão importante, mas também por ter dado alegria àquela boa mulher. Quando satisfeita com as minhas ações, ela dizia para mim: “Venha cá, meu filho!” e, ao me aproximar do seu corpo, ela me enlaçava o pescoço, beijava minha cabeça e rapidamente completava: “Agora, vai tomar banho”, ou “Agora, vai estudar”, ou “Agora, vai dormir”. Então, aquele abraço tão duradouro me deu uma alegria imensa. Mas, como era do seu estilo, ao me soltar, falou: “Você agora já tá no ginásio, já é um rapaz, não pode mais ficar o dia todo na rua. E complementou: “Estuda bastante, tá bom, meu filho? Isso que é importante para você e deixa sua mãe feliz.”

1ª formatura – Jubdervan Viana da Costa (acervo do autor)

JUBDERVAN VIANA DA COSTA é autor do livro “Memórias de uma infância de subúrbio Bangu: o bairro que me embalou”, de onde este depoimento foi extraído. Filho de um operário da Fábrica do Realengo e de uma lavadeira e caçula da família. Economista e professor aposentado; pós-graduado em Administração Pública, lecionou na UFRRJ e em escolas técnicas da Rede Pública do Estado do Rio de Janeiro.