4 Patrimônios suburbanos - Vol. 1 Nº 4 / fevereiro 2024
O que pode ser considerado patrimônio material nos subúrbios cariocas?
O caso da APAC Marechal Hermes e outros bens de interesse
Parte da discussão sobre a visibilidade da história suburbana carioca passa pela identificação, valorização e preservação dos bens históricos materiais desses territórios. Durante o mestrado, estudei o bairro de Marechal Hermes, que teve como projeto inicial de concepção uma vila proletária construída em 1913, a pedido do então presidente Marechal Hermes da Fonseca e que décadas depois, durante o governo de Getúlio Vargas, teve um novo projeto de urbanização e habitação social elaborado para o local. Em 2013, ano de seu centenário, esse trecho do bairro foi reconhecido pela Prefeitura como patrimônio cultural do Rio de Janeiro através da criação de uma Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC). Segundo o decreto assinado pelo então prefeito Eduardo Paes, um dos principais objetivos da medida foi a preservação dos bens culturais que constituem um “valioso testemunho das várias fases de ocupação do bairro”, incluindo a importância do “projeto de construção da vila proletária para a ocupação do subúrbio carioca”[1].
A história do bairro hoje é bem mais conhecida, especialmente por aqueles que estudam os subúrbios. Mas nem sempre foi assim. Esse processo de reconhecimento e patrimonialização do local se deu após muita mobilização de moradores na busca pela preservação da arquitetura e história, a partir de movimentos iniciados no fim da década de 1990. Tais iniciativas tinham como objetivo fomentar a cultura e contar a história daquela área a seus moradores. Neste mesmo período, foram produzidos trabalhos acadêmicos com o intuito de visibilizar a particularidade do conjunto arquitetônico projetado e construído. Assim, o resgate de determinados elementos do passado do lugar e o destaque dado a partir de movimentos acadêmicos e de dentro do próprio bairro o reposicionaram no mapa da cidade, de modo a permitir medidas como a da patrimonialização.
Embora a instituição da APAC não tenha representado a restauração do conjunto protegido, reavivou-se o discurso local sobre a singularidade da concepção de Marechal Hermes. Grande parte desse discurso se ancora no destaque à presença do Estado frente a uma região que sofre com a sua ausência. E de fato trata-se de uma iniciativa habitacional estatal muito interessante e pioneira. Por mais que não tenha sido integralmente implementado, o projeto apresentava elementos importantes e ainda hoje inovadores para a discussão não só da habitação de interesse social no Brasil como de política urbana de um modo geral. Mais de um século depois, uma iniciativa deste porte, ancorada numa política de locação social ‒ com previsão de construção não só casas, mas de equipamentos públicos; a criação de residências com tipologias diferenciadas considerando diferentes conformações familiares; a produção agrícola próxima às famílias através da criação de hortas urbanas ‒ traz para discussão temas atuais urgentes nas agendas urbanas.
Ao mesmo tempo, durante a pesquisa, em entrevista com moradores e articuladores locais, descobri uma série de outros lugares que não foram tombados nem preservados, mas estão relacionados ao cotidiano, vivências e memórias afetivas do bairro, como por exemplo o Cine Lux, a Maternidade Alexander Fleming, a sede do Botafogo Futebol e Regatas e o Clube Marã. São locais lembrados como marcantes da história do bairro e das redes de sociabilidade ali criadas.
Chamo atenção para esses lugares para refletir sobre a existência de outros patrimônios nos subúrbios, muitas vezes bens isolados ou descaracterizados, que não possuem a força de ambiência de um conjunto arquitetônico e não são tombados, mas que poderiam ser reconhecidos e valorizados. Penso em outros bairros suburbanos cuja história não possui elementos tão marcantes quanto a iniciativa estatal que deu origem ao bairro de Marechal Hermes, mas que também possuem suas singularidades. Tais construções contam a história de diversas temporalidades e territorialidades suburbanas que muitas vezes são invisíveis para os próprios moradores locais. A identificação, reconhecimento e recuperação, quando possível, desses imóveis poderiam servir para reforçar o pertencimento e a identidade dos bairros suburbanos e contribuir para valorizar a história dos subúrbios de modo menos uniforme e estereotipado. Não se trata de congelar a arquitetura suburbana de séculos passados, mas discutir sobre o que é visibilizado e invisibilizado na identificação de possíveis bens materiais e a importância de se considerar as diferentes formas de construir e morar que se estabeleceram no processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro, especialmente nos subúrbios. A pergunta que fica é: O que pode ser considerado patrimônio material nos subúrbios cariocas?
[1] Decreto nº 37069, de 29/04/2013, publicado no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro em 30/04/2013. Disponível em: <http:www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4359002/4107809/Dec.APACM.H..pdf>.