4 Patrimônios suburbanos - Vol. 1 Nº 4 / fevereiro 2024
Os cinemas de estação de Olaria e Ramos*
Lembro bem da minha primeira experiência no cinema. Com a sala lotada, o Cine Olaria exibia o recém-lançado “O Rei Leão”, sucesso absoluto de público. Eu assisti ao filme no colo da minha irmã, pois não havia mais lugares. Tinha sete anos de idade, e não mais usufruiria desse lazer que ficava a apenas 100 metros de casa. Logo depois, o imponente cinema fechou suas portas. Era o fim dos cinemas de rua do subúrbio da Leopoldina.
Inaugurado em 1942 como cinema Santa Helena, funcionou por mais de cinquenta anos, mas suas instalações permanecem sem uso desde o encerramento daquelas atividades. O prédio foi tombado pelo IRPH (Instituto Rio Patrimônio da Humanidade) no ano de 2015, sendo finalmente reconhecido como “um raro remanescente dessas construções no subúrbio carioca” e “considerando a importância do antigo Cine Oriente na implantação da atividade cinematográfica na cidade do Rio de Janeiro”.
Porém, outro cinema de estação em Olaria não teve a mesma sorte ou consideração, apesar de sua importância histórica e cultural. Sem a proteção dos órgãos patrimoniais, sem uso e sem manutenção, o antigo Cinema Oriente ficou abandonado por muitos e muitos anos, até ver parte de seu telhado desabar após um temporal, em 2020, ano em que completava cem anos de idade. Fechado na década de 60, o imóvel coleciona mais anos fechado do que funcionando como cinema ou teatro. O Oriente, “no populoso bairro de Olaria”, foi o escolhido para ser a sede do primeiro “Teatro dos Subúrbios”, em um movimento da Prefeitura da época para ampliar o número de teatros na cidade, encomenda do Presidente da República ao Distrito Federal, entregando-os a companhias de teatro nacionais. O ano era 1944, e no periódico A Noite falava-se no “início de uma nova era teatral nos subúrbios”.
Além dos muitos eventos importantes que abrigava, o que demonstra sua relevância como instrumento de difusão de arte e cultura não só para os subúrbios como para a cidade, o edifício que abrigou o cinema Oriente possui uma arquitetura de beleza singular. Totalmente inserido em seu contexto urbano, é até possível passar por ele sem notá-lo, mas não é possível, uma vez notado, não o admirar. Junto a outras edificações históricas que conformam um centro de bairro, o Oriente não possuía a monumentalidade nem o luxo de outras salas de cinemas da época, como o próprio Santa Helena, mas os ricos detalhes de sua fachada eclética o destacam na paisagem. E não se pode falar da paisagem dos subúrbios que se desenrolaram ao longo da via férrea, sobretudo da antiga linha Leopoldina Railway, sem falar dos cinemas de estação. Só no bairro de Olaria existiram três. Ao lado, no bairro de Ramos, noticia-se quatro. O espectador podia escolher onde se divertir.
Destacado na paisagem de Ramos, o antigo cinema Rosário (denominado depois como Cine Ramos) foi inaugurado em 1938, funcionando até o começo da década de 1990 e tendo sido tombado pelo IRPH em 1997. Após o encerramento das atividades como cinema, o belo exemplar de arquitetura art déco abrigou a famosa boate “Trigonometria”, continuando a fazer parte, por um tempo, da vida social e de encontro dos moradores. Porém, há pelo menos vinte anos encontra-se também abandonado.
Sabemos que a noção de patrimônio se articula diretamente com a noção de valor que damos a determinado bem. E um bem cultural, por sua vez, representa aquilo que é importante de alguma forma para uma comunidade ou grupo social, que pertence ao passado e ao presente, que constitui identidade. A paisagem é a documentação viva de memórias coletivas da sociedade, que nos permite conhecer sobre nossas origens. Compreende-se a necessidade da preservação de referências históricas na paisagem urbana, sobretudo na Zona Norte do Rio, onde muitas vezes a história não é escrita ou contada. É urgente a tomada de medidas de preservação e valorização para as salas de espetáculos de alto valor histórico e cultural para os subúrbios e para a cidade do Rio de Janeiro. Os cinemas de estação desempenharam papel fundamental na constituição dos espaços de cultura e lazer suburbanos. Reintegrá-los à sociedade como espaços de arte é fundamental para a afirmação das identidades e memórias suburbanas.
* Nota da autora: os cinemas de estação são assim denominados por terem sido construídos nas proximidades das estações de trem dos bairros suburbanos cariocas. Alguns bairros que eram cortados pela então linha férrea Leopoldina Railway e configuram a Zona da Leopoldina, como Olaria, Ramos, Penha e Bonsucesso, receberam um grande número desses cinemas.
REFERÊNCIAS
SANTOS, Joaquim Justino dos; MATTOSO, Rafael; GUILHON, Teresa. Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.
SOUSA, Raquel. As Salas de Cinema no Subúrbio Carioca do Século XX.
Espaço Aberto, PPGG – UFRJ, V. 5, N.2, p. 127-142, 2015. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/EspacoAberto/article/view/2698/3840.
Decreto Rio nº 41185 de 29 de dezembro de 2015. Determina o tombamento definitivo do edifício que abrigou o Cinema Olaria, antigo Cinema Santa Helena, situado na Rua Uranos, nºs 1474 e 1478, Olaria – X R.A. e dá outras providências. Disponível em https://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4722991/4152612/338DECRETO41185TombamentoCineOlaria.pdf. Acesso em 15/10/2023.
Decreto N° 16.134 de 06 de Outubro de 1997. Tomba o bem que menciona. Disponível em https://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4722991/4121946/140DECRETO16134ImovelRuaLeopoldinaRego52.pdf. Acesso em 15/10/2023.
Teatro- Cinema Oriente. A Noite, Rio de Janeiro, 1944. Disponível em https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 18/06/2020.
Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 1938. Disponível em https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em 18/06/2020.