Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2024 • ano 1 • nº 4

4 Patrimônios suburbanos - Vol. 1 Nº 4 / fevereiro 2024

Depoimento

Patrimônio e escuta: uma perspectiva técnico-afetiva para o planejamento de políticas públicas

Melissa Martins Alves

Corpo, condição e experiência são, nas palavras de Conceição Evaristo, os três elementos-chave para a construção de uma escrevivência (OLIVEIRA, 2006). Levando em consideração as singularidades presentes no ser negro, a autora enxerga no corpo os atos de reafirmação de existências e reversão de estereótipos constantemente atrelados à pele por conta da memória social. Estes se unem às condições que cada pessoa encontra e vive em sua trajetória, evocando e provocando suas memórias individuais e coletivas, que são influenciadas por circunstâncias de raça, classe e gênero. Ambos os movimentos se aliam e se refletem de maneira profunda nas experiências adquiridas por essas pessoas e funcionam como construção teórico-prática de suas narrativas. Neste sentido, é possível dizer que a construção de um lugar se alia a estes conceitos, tal como o que ocorre no território da Grande Madureira.

Conceição Evaristo e a Escrevivência. Arte de William Maia

Capital do subúrbio. Berço do samba e de bambas. Coração da zona norte do Rio de Janeiro. A suburbana XV Região Administrativa (R.A.) da cidade é repleta de elementos simbólicos, importantes para o imaginário da cultura do município, que ultrapassam as paisagens natural e construída. Nesse quase século e meio após o término oficial da escravização, o ensaio de um Plano Urbano de Conservação objetiva reconhecer como patrimônio cultural manifestações imateriais (musicalidade, vivências nas ruas, práticas religiosas…) e materiais (casas geminadas de operários, quadras de escolas de samba e linhas de modais de transporte que cruzam e modelam os bairros), que são referências da identidade formada naquele ambiente por ex-escravizados e seus descendentes afro-brasileiros ‒ a maioria proveniente da região do Vale do Paraíba ‒, a consolidação das maneiras de viver, desde os primeiros momentos desse período.

Ainda que se trate de um lugar rico em memória e produção de fazeres e saberes da cultura afro-brasileira, não existem bens edificados, na Grande Madureira, que sejam tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, no âmbito da matéria (CID, 2016). O que temos é o reconhecimento de referências de bens de natureza imaterial, como o jongo, embora as manifestações de sua ocorrência não sejam suficientes para um rebatimento material na região. Hoje a R.A. vem ganhando cada vez mais destaque, a exemplo da conquista de tombar a Quadra da Portela, pelo Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural do Rio, e dos editais de fomento à cultura propostos pela Secretaria de Cultura da cidade.

 

Mapa da Grande Madureira

 

Recorte de APAC Madureira /Oswaldo Cruz /Turiaçu

Considerando o termo cunhado por Evaristo, a pesquisa se debruçou na filosofia da Escrevivência ‒ para correlacionar as experiências de pessoas que vivem o espaço ‒ a partir de pesquisa online, de diálogos com integrantes da G.R.E.S. Portela, que participaram da atividade presencial, e das andanças da própria autora deste ensaio, que se iniciou como um Trabalho Final de Graduação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU-UFRJ). Busquei não só traçar paralelos apenas por meio de arcabouço teórico construído ao longo de estudos e práticas acadêmicos, mas também me autoinscrever na pesquisa – tal qual Conceição Evaristo, que crê que a sua escrita é, de fato, o acúmulo de tudo o que ouviu desde a infância, entendendo que “falar e ouvir entre nós ‒ população racializada ‒ seja talvez a nossa única defesa, o único remédio que possuamos.” (EVARISTO, 2007, p. 19, grifo nosso).

Tal imersão “técnico-afetiva” transformou-se em política pública cultural, com a elaboração da cartilha “Encruzilhada Cultural na Grande Madureira ‒ o ensaio para uma APAC [vol.1]”. Com a justaposição dos 4 eixos norteadores deste primeiro volume, buscou-se difundir e proteger a região, defendendo assim os seus bens culturais através de uma APAC (Área de Proteção do Ambiente Cultural) que propõe uma nova forma de se construir leis de Gestão do Patrimônio. Para compreender mais o plano de preservação que visou inventariar, mapear e propor preservação a patrimônios culturais dentro da poligonal que abarca os bairros de Madureira, Oswaldo Cruz e Turiaçu, acesse o link https://drive.google.com/drive/folders/1R-qA_2UhavympS86416c8rscrLKBjkTa?usp= sharing, onde encontrará o material da Cartilha na íntegra.

Capa da Cartilha Encruzilhada Cultural

Em alusão ao primeiro projeto de Corredor Cultural, em que se dividiu a área da região central do Rio em 4 áreas de abrangência diferentes, de maneira estratégica, a escolha do recorte na região da Grande Madureira levou em conta, a priori, características identitárias da paisagem que aproximam os bairros, de acordo com conclusões realizadas após o levantamento sobre os mesmos. Considerando as especificidades dos bairros mencionados, é possível analisar que possuem patrimônios ligados à história da musicalidade brasileira, como a Casa do Jongo, as quadras da Portela, Portelinha e do Império Serrano. Além desses também existem as tradições do charme no Viaduto e no Parque de Madureira; o evento Trem do Samba, o Palácio Rio 450, casas geminadas, conjuntos habitacionais com valor histórico e ainda o estilo do comércio nas ruas e calçadões, bem como o mercado de ervas e artigos religiosos.

Cartografar os desejos e anseios dos muitos que conhecem a região gerou resultados que nem eu mesma poderia prever. Não só por conseguir praticar ações de educação patrimonial para viabilizar o ensaio de políticas públicas culturais de maneira efetiva, mas também por ter a certeza de que sem toda essa presença, não seria possível concluir desta forma. Não seria possível exercer, com pleno sucesso, o produto final e tampouco a profissão de arquiteta e urbanista. Nesse sentido, mesmo ambos tendo a sua igual relevância projetual, o processo teve a sua grandeza. Ao atravessar e ser atravessada por entre a paisagem dos bairros, as pessoas, e a academia, parafraseio aqui o compositor Paulinho da Viola (1970), com grifos meus, e digo: “Foi um rio que passou em minha vida/ E meu coração se deixou levar…”.

Melissa Martins Alves é arquiteta e urbanista pela UFRJ, pós-graduanda em Arquitetura, Educação e Sociedade e curadora com formações no Parque Lage, no IMS-Rio e nas suas vivências. Do subúrbio carioca ao cerrado goiano, tem o seu foco em patrimônio histórico-cultural, ancestralidades urbanas e arte-educação, e busca tecer conexões e pesquisas que conjuguem corporeidades, oralidades e territorialidades. Atualmente é Gerente de Projetos Arquitetônicos da Superintendência de Patrimônio Histórico e Artístico na SECULT-GO