Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Entrevista

Seu Mirinho e a maior herança de Dona Esther: “fazer o bem, sem olhar a quem”

Juliana Bonomo

Em agosto do ano passado, estive na casa do Sr. Waldomiro Meirelles, baluarte do G.R.E.S. Portela, mais conhecido como “seu” Mirinho que no auge de seus 92 anos bem vividos, segundo ele mesmo, me recebeu na varanda de sua casa, em Oswaldo Cruz. A mesma casa onde viveu sua tia dona Esther, figura fundamental para o surgimento da Portela, pois oi através das festas realizadas em sua casa, que muitos portelenses tiveram os primeiros contatos com o samba, ao lado de figuras já consagradas da música brasileira.

A conversa de uma tarde inteira com seu Mirinho rendeu boas histórias sobre as festas promovidas por dona Esther, e sua personalidade extremamente bondosa e cativante. Paulo da Portela, Dora e Dodô também foram mencionados nas memórias do baluarte.

Enfim, divido com você, leitor/leitora, um pouco do que ouvi de seu Mirinho numa  bela tarde de céu azul, em Oswaldo Cruz. Ao fazê-lo, espero que você, assim como eu, seja tomado (a) pela consciência da importância de incluir os subúrbios e suas grandes personalidades nas políticas públicas de preservação dos patrimônios cariocas. Vamos, então, às histórias pela voz de nosso entrevistado:

“A dona Esther era minha tia, ajudou minha mãe a me criar. Minha mãe morava ali nos fundos, na casa aqui ao lado e elas se davam muito bem.

Seu Mirinho, em frente à casa onde morou sua tia Esther Maria Rodrigues, imóvel incorporado ao Circuito do Samba pela prefeitura

Minha tia era uma matriarca mesmo, como dizem. Ela tinha muita espiritualidade, sabe? Era uma vidente de primeira! Dava conselhos para o bem. Por exemplo, ela dizia a alguém: “- não tome esse caminho porque não vai dar certo”, aí, se a pessoa quebrasse uma perna ou acontecesse algo ruim, ela dizia: “-  te avisei, você quis seguir o outro caminho!”.

Era uma pessoa muito bacana, muita gente acreditava nela, na verdade, o bairro inteiro! A pessoa chegava aqui para pedir conselhos, a olhava e não precisava falar nada, porque ela já percebia, já sentia alguma coisa. Então, a casa estava sempre cheia, pessoas conhecidas e desconhecidas chegavam e falavam: “- eu quero falar com a dona Esther!”,  e ela atendia a todos. Deu eu muitos conselhos para Paulo, Caetano e Rufino (os fundadores da Portela). Eles todos são gente nossa.

Tem gente que abandona as pessoas quando elas estão precisando. Aqui era diferente. Essa é uma casa abençoada, graças a Deus! Teve época que a minha tia criava muitas moças e muitos rapazes.  Foi uma benfeitora, inclusive foi responsável por muitas benfeitorias aqui no bairro também. No da minha infância, Oswaldo Cruz era um bairro com pouca estrutura, havia muitos problemas aqui. Esta rua (Antônio Badajós) era uma buraqueira até lá em cima. Mas, naquela época (em torno da década de 1940), havia três pessoas muito influentes no bairro: dona Esther, o vereador Pedro Faria e o governador Negrão de Lima, e a dona Esther, com toda sua bondade e por tudo o que representava, ajudou muito o local. Não tinha problema em falar com quem fosse, chamava general, presidente, deputado… e dizia na cara deles todas as necessidades da comunidade.

Graças a Deus, é por isso que Oswaldo Cruz é esse lugar sossegado, tanto que eu não saio daqui nunca, estou bem satisfeito aqui.

Quando minha tia era viva, fazia muitas festas no quintal lá nos fundos, que dava para a outra rua, tinha um galpão e, ao lado, um palanque para os músicos. O pessoal cantava e dançava muito. O terreno que aí do lado era nosso também, As festas duravam de dois a quatro dias. Quem precisava de serviços médicos ou policiais, telefonava para cá. Sabe por quê? Os médicos estavam todos aqui, os policiais também, todos dançando com a gente (risos). Quando alguém telefonava para o hospital Carlos Chagas, mandavam telefonar para o 346, que era o telefone daqui, porque os médicos todos estavam aqui (risos)… todos não, quase todos, né? Era a mesma coisa para chamar os carros do socorro urgente, os motoristas paravam o carro ali em frente e ficavam dançando.

Minha tia era muito querida! As festas aconteciam aqui do lado, não tinha confusão, era uma coisa que só vendo!

Retrato de D. Esther

Eu sinto falta desse tempo, a Dodô dançou muito aqui no fundo do quintal da minha casa, ela e a Dora (rainha da Portela, à época: “Vai como pode”). Muita gente não conhece a Dora, dançou, também, como porta-bandeira aqui no fundo da minha casa, ela e a Dodô ficavam ensaiando.

Hoje em dia, as pessoas me pedem para ver o quintal, mas eu não estou mostrando, ele não existe mais. Aqui só tinha essa primeira casa, depois construíram mais uma  e  no terreno do lado de lá, construíram também. Então, o quintal praticamente sumiu. Ali  onde o Paulo, a Dodô e a Dora dançavam, está cheio de entulho de lixo.

Aliás, o Paulo morava aqui perto, ele era  muito querido, uma pessoa educadíssima. Mesmo sendo tudo o que ele foi e tendo a importância que ele teve para o bairro e para a Portela, acabou morrendo na miséria, nem sei te explicar porquê. Eu, por exemplo, sou testemunha, nós saíamos de casa com um saco de feijão de 60 kg e dávamos um quarto daquele saco de feijão e arroz para o Paulo comer. A mulher dele, dona Eliza, gostava muito da minha tia. Praticamente, coitados, acabamos de sustentar os dois. Ele trabalhava em Bento Ribeiro e aqui em Oswaldo Cruz, era lustrador de móveis, hoje em dia, quase não tem mais isso.

Eu puxei um pouco a minha tia, graças a Deus! O importante para mim é fazer o bem sem olhar a quem, como ela  fez, tenho certeza de que  está no alto astral .Sou bem-quisto por um bocado de gente,  não tenho inimigos. Ter inimigo, é até de graça, a inveja é muita… ouço falar muitas bobagens sobre esse cargo de baluarte, mas vou com a minha faixa sempre para os ensaios, vou para todos os bailes da Portela. Então, eu entrego a Deus o que é de direito, rezo muito, creio muito em Deus sobre todas as coisas”.

Enfim, conhecer o seu Mirinho e ouvir suas histórias, foi uma experiência verdadeiramente tocante e enriquecedora. Entre tantas belas lições, o querido baluarte da Portela me mostrou a força da história de Oswaldo Cruz e da cultura do samba, uma manifestação que transcende gerações e fronteiras, uma forma de ser e estar no mundo, ao mesmo tempo em que tem o poder de transformar vidas.

Através de uma filosofia simples, porém poderosa: “fazer o bem, sem olhar a quem”, encontrei um propósito ainda maior: celebrar e honrar a nossa cultura, cuidar do próximo e deixar um legado positivo neste mundo.

Sobre a autora: JULIANA BONOMO é mestre em Memória Social pela PPGMS/UNIRIO, Doutora em História Econô- mica pela FFLCH/USP, Pós-doutoranda em História no IEB/USP. Coordenadora do Núcleo de Oralidades e Etnografia - NoEtno, sediado no IEB/USP.