Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Depoimento

Swing de Campo Grande

Priscilla Rodrigues Fonseca Moura

Identifico-me com milhares outros que nasceram na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Sou de Campo Grande, bairro localizado a cinquenta quilômetros de distância do Centro. Aqui, neste texto, faço um relato pessoal de conclusão da minha tese de doutorado, defendida em 2021, baseado nas teorias que nela desenvolvi.

Quando fui morar em Niterói para realizar minha graduação em geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF) – já que o deslocamento diário até a cidade vizinha seria bastante demorado – percebi uma mudança drástica no discurso que eu defendia, de que “Campo Grande tinha tudo”. Deste novo lugar, passei a vivenciar meandros da minha própria cidade. Praias, teatros, museus e diversos tipos de lazer foram sendo literalmente des-cobertos ao longo desses anos. Fui me dando conta de que eu não conhecia o Rio para além da região do meu entorno. De fato, pesquisas anteriores, como as minhas próprias, lançaram luz ao aspecto centralizador do bairro-região, considerando-o uma centralidade-periférica para a Zona Oeste e para outras cidades, levando a uma “imobilidade” geográfica da população. Na verdade, antes da UFF, os teatros e os museus não me faziam tanta falta assim, realmente, eles não chegavam até a mim em número suficiente, como o mapa abaixo demonstra.

Mapa cultural do Rio de Janeiro Fonte: http://infograficos.oglobo.globo.com/rio/mapa-cultural-do-ri o.html. Infográfico: Walter Moreira e Daniel Lima/Editoria de Arte. Acesso em 24 set. 2019.

Converso com Bourdieu (1983) a respeito dessa experiência. O autor salienta que o universo escolar é o dispositivo mais poderoso de dominação e de ruptura. A mudança de cidade, primeiramente, alterou radicalmente meu tempo de deslocamento. Tornou-se muito mais rápido ir de Niterói à maioria dos locais centrais do Rio de Janeiro. O autor defende que a ampliação de uma certa experiência pode carregar elementos que nos fazem romper com ou nos subordinar a um novo habitus, que seria a incorporação de preferências ligadas a uma posição na estrutura de classes. Ou seja, eu estava adquirindo um capital cultural que me proporcionou ter vontade de experimentar outras formas de viver a cidade que eu não valorizava e/ou não conhecia e que, de certa forma, estavam associadas à posição social do estudante universitário de classe média branca.

A partir desse lugar, minha opinião sobre Campo Grande mudou completamente. Se antes eu dividia um discurso parecido com o dos meus vizinhos, se encontrava lazer e serviços ao meu redor, agora via uma grande “imobilidade” na possibilidade de vivenciar a urbe e suas amenidades. Os problemas com transporte público e os longos deslocamentos para encontrar os novos amigos revelaram a perspectiva contraditória de enxergar a centralidade que o bairro proporcionava pari passu a suas inúmeras limitações, muitas delas associadas à clássica visão do que são as periferias urbanas, como apontam os estudos de Abreu (1981) e Kowarick (1983). E, assim, durante uma aula do mestrado sobre Bourdieu, me dei conta de que eu havia não só absorvido um novo habitus, mas tinha a ele me subordinado. O desejo de me “centralizar” na cidade era legítimo? Estaria eu negando minha origem e negligenciando formas de mudar a realidade? Onde estavam o rompimento e a crítica?

Dessa forma, me pergunto, a partir de todas essas experiências acumuladas e sentidas de modo contraditório e crítico: o que significa, de fato, ser periferia e estar na periferia? O que é a periferia hoje? Como a população periférica enxerga sua própria situação, seu lugar na cidade? Como classifica o espaço? É possível encontrar formas de vivência e experiência que rebatam a ideia clássica de periferia? Qual tipo de produção do espaço social está sendo gestada ou realizada que foge a essa forma de pensar o espaço?

Por isso, no fim de uma longa trajetória construída desde a monografia, eu posso dizer que me orgulho da pesquisa que desenvolvi para me tornar doutora. Eu me orgulho do caminho que trilhei. Eu vim dessa periferia sobre a qual escrevo e só via coisas ruins. Tudo o que eu estudava me fazia ter vontade de ir para a centralidade que ela não podia me dar, de buscar o capital que lá não encontrava, um habitus tão desejado. Eu não aguentava mais ter de ir para outros lugares para assistir a um filme legendado, ver uma peça, uma exposição. Eu queria que Campo Grande virasse o Centro, eu queria que “melhorasse”.

No entanto, a tese me trouxe de volta. Me levou a saudade, a nostalgia. Porque eu sou essa periferia. Não importa aonde eu vá, eu carrego comigo um sentimento de pertencimento, de comunidade que eu nunca encontrei em nenhum outro lugar, exceto na minha mãe.

Por isso onde quer que
Eu ande em qualquer pedaço
Eu faço
Um Campo Grande

(GALVÃO; MOREIRA; CANTOR, 1972).

E quando eu vejo o movimento das pessoas decidindo ficar ou retornando pra esse lugar que em algum momento eu repudiei, cuja essência desejei mudar, me sinto demasiadamente feliz. Por algum tempo, fui resoluta. Eu não queria estudar Campo Grande mais uma vez. Afinal, desde 2010 foram muitos artigos, duas monografias, a dissertação… E eu dizia: chega, não quero mais! Contudo, humildemente, eu confesso, eu também retornei.

Retornar é reconhecer meu caminho, é andar no calçadão e ver para além de uma multidão de gente, do calor, da gritaria dos carros de som, dos papeizinhos de propagandas de dentista e cabeleireiro voando, da galera vendendo o “chip da Tim”. É ver vida, luta cotidiana silenciada, histórias que se passam em lugares ordinários. E isso é permanência, é pulsão, é emoção, é rompimento com significados que não nos definem. Por isso, para mim, tentar enxergar a periferia por ela mesma e a partir dela se tornou também meu modo de exaltá-la.

 

REFERÊNCIAS

ABREU, Maurício de Almeida. Contribuição ao estudo do papel do Estado na evolução da estrutura urbana. Revista brasileira de geografia, v. 43, n.4, p.577-585, 1981.

BOURDIEU, Pierre. Gosto de classe e estilos de vida. In: ORTIZ, Renato (org.) Pierre Bourdieu. São Paulo, Ática, 1983. p.82-121.

FONSECA, Priscilla Rodrigues. Por outros sentidos de periferia: o caso de Campo Grande, Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro-RJ, 2021.

GALVÃO, Luis; MOREIRA, Moraes; CANTOR, Paulinho Boca de. Swing de Campo Grande. Rio de Janeiro: Estúdio Somil: 1972. 3:10.

GIFFIN, Karen Mary. Produção do conhecimento em um mundo “problemático”: contribuições de um feminismo dialético e relacional. Estudos feministas, v. 14, n. 3, p. 635, 2006.

KOWARICK, Lúcio. A espoliação urbana, Paz e Terra, São Paulo, 1983.

PRISCILLA FONSECA é nascida e criada em Campo Grande, periferia do Rio de Janeiro. Formada em Geografia e doutora em Planejamento Urbano e Regional. Os deslocamentos, sempre longos e desgastantes, cumpriram um importante papel na construção da sua relação com a cidade, influenciando suas escolhas acadêmicas. É voraz escritora de diários, encontra alívio no mar e no caos da cidade.