2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023
Isto é um dizer-subúrbio
Última estação
Para chegar até a estação, antigamente, era necessário subir uma escada que é bem estreita e fica situada na lateral do viaduto. Vizinha da praça do canhão, da escada dava pra ver as pipas presas nas árvores, as linhas com o cerol colorido e um cheiro de chuva no ar.
Logo ao entrar, percebe-se um fluxo contínuo de pessoas chegando pela parte interna dos trilhos e subindo a plataforma com os sapatos sujos de pedra e aço queimado. O trem não é um ser místico que corta o subúrbio, mas o contrário. O subúrbio é uma magia que circunda o trem cortante.
A última estação é aquela em que sempre se para, pela qual todos os dias se passa e por onde o sol nasce a cada contorno da esfera. É nela que se mora e é dela que se vive, ela faz teto sem estar por cima de qualquer parede e morada ao passo que retornamos todos os dias a ela, ao espírito de quem a construiu e de quem a reconstrói a cada dia.
A última estação não é cidade, tampouco está na cidade.
Aqui não tem mar de água salgada, mas de concreto e fio cobre. Aqui os pássaros rangem e os automóveis cantam, os troncos são de concreto[1] e os postes de seiva. São os vergalhões das grades da estação as vértebras por onde se pendura sua própria ossada.
Ela arde ao sol mais quente, pende às horas mais vagarosas e atende pelo nome de casa. Ela não possui endereço nem sequer se situa em uma rua. Pelo contrário, as ruas se situam partindo dela, os endereços são guiados por elas, os bairros surgem dali A chuva não molha a estação, somente o sol a inunda, até nos dias mais chuvosos, mesmo que através das memórias de seus transeuntes. Memórias dos dias ensolarados e ardentes de onde surge a vívida sensação de se estar nela, de morar nela e dela, de se alimentar nela e dela, viver nela e dela e finalmente ser nela e dela.
A última estação é o centro de tudo. Escada não é subida. Grade não é proteção. Subúrbio não é cidade.
Estação central
A ordem das estações não altera o subúrbio.
O centro é aqui, da última estação pra lá.
Para quem mora do lado de dentro do trilho, o trem não é só um elevador horizontal, máquina de trabalho[2], caixa de sonhos de quem sonha às quatro e meia da manhã. Ele também é despertador. Na estação do piscinão, estação de transferência e condomínio para quem mora na parte interna dos trilhos, essa entidade, o trem, chega mais cedo, mais perto e mais amigo, funcionando também como um despertador. O primeiro trem sai de lá às cinco e as pessoas que entram nele ainda sonham porque ainda estão dormindo. Estão dormindo porque ainda sonham.
Na parte oeste da cidade, onde o sol escorre pelos fios de cobre dos postes[3], ainda existe quem sonha. Tem mais gente que sonha do que gente que dorme. Há algum tempo, existia uma árvore guardadora de pipas, talvez ela estivesse lá antes mesmo da linha férrea. Ela protegia as pequenas casas do sol da tarde e era protagonista dos sonhos de um senhor que conheci. Ele dizia que não sabia se, em seus sonhos, a árvore era muito grande ou ele era muito pequeno, mas que tentava incessantemente chegar ao galho mais alto e sempre acordava antes. Naquele tempo, ele dizia, o trem não chegava tão cedo. Era um outro tempo, tanto nas décadas do calendário, quanto nas folhas de ponto das fábricas. As composições do trem eram diferentes, o sol era menos quente e não eram necessárias escadas ou catracas. Essa árvore me faz lembrar do homem minúsculo que a escala todas as vezes em que penso nela. O homem guiado por um ímpeto de ver a estrela brilhar no seu chapéu[4], tocar o céu e ver a coluna vertebral de aço do subúrbio ser cortada por esse ser místico que guarda sonhos. Esse homem falava das plantas por baixo das plantas, montando um universo infinito, ele se torna um senhor que lembra dos seus sonhos e, por fim, uma criança que escala em busca da estrela, em busca dessa visão que não chega e que não vai embora. O homem poderia ter qualquer nome; o senhor, igualmente. A criança, não. O nome da criança só poderia ser um: João. Não por qualquer outro motivo que seu próprio nome, seus próprios sonhos, sua própria árvore e suas próprias pipas. Ainda hoje elas colorem o céu do subúrbio, a quilômetros infindáveis de altitude, como quem tenta entrelaçar sua linha a uma estrela qualquer a fim de apará-la e trazê-la para mais perto. Suas pipas, invisíveis a quem beira os muros da estação, são os sóis dentro do trem, elas ofuscam qualquer outra paisagem e ganham força e vida de dentro da máquina que guarda os sonhos de João, a mesma que torna possível a escalada de sua árvore gigante. Até hoje essa árvore persiste naquele lugar, só que no mundo dos que têm o trem como despertador.
A árvore ainda existe. O homem, o senhor e a criança sonham. O trem é uma ponte. Subúrbio não é cidade.
Rua das carrancas
É curioso uma pipa, na maioria das vezes ela é quem segura o soltador, num jogo de quem voa mais alto, de quem voa primeiro.
O soltador de pipas e o trabalhador assíduo, geralmente, são a mesma pessoa nesse lugar onde a infância e o trabalho atravessam toda a vida, onde os trilhos e as estações atravessam todas as ruas. Uma mistura de tempo e céu, cor e chão, cinza e vento, gente e linha. Há de se afirmar aqui que as barricadas e quebra-molas são carrancas, guardiãs das crianças-mães-e-pais que habitam essas ruas de pedra, madeira e trilho. É comum que se utilize uma carranca no intuito de proteger uma casa, também é inegável sua propriedade embelezante. Uma carranca tem a função de zelar pelo lar, lugar onde se faz morada, lugar de conforto, marcado por um sentimento de amor pelo espaço em que se vive.
Passando pelas ruas adjacentes à última estação, aquelas que se misturam organicamente aos trilhos do trem e ao pó de aço, é nítida a carranca-quebra-molas e a carranca-barricada. É nítido o feitiço de sua presença nessas ruas. Quando se desce ou se sobe na última estação, a passagem por essas peças de concreto são inevitáveis. É tão fácil olhar pras referidas obras de arte suburbanas, feitas de concreto, Estado e medo, e enxergar um artifício de proteção das ruas quanto olhar para uma carranca de madeira, dessas mais comuns, e ter a mesma impressão. Elas servem para proteger as nossas casas, e quem sente medo delas, certamente não mora aqui. Ao ir trabalhar, o sujeito utiliza-se do artifício da carranca para proteger a casa dos espíritos ruins que porventura possam invadir e tomar seu lar. Há uma diferença entre passar pela carranca e deixar-se cruzar por ela. Quando é permitido a uma carranca nos cruzar, a ela é emprestado algum sentido; mandinga acontece ali, que a ela também se empresta uma parte desse corpo que a respeita e reforça.
Quando o quebra-molas é a obra de arte que embeleza e protege as nossas moradas, a rua se torna o nosso lar mais comum, nossa casa menos privativa, e justamente por isso, de cada um de nós. Existe um tempo em que barricadas emprestam mais requinte à rua e quebra-molas mais beleza ao chão. E ao lar de todos nós, muito mais infância. O caráter estático das carrancas, a priori, empresta possibilidade de movimento aos corpos que dela se valem pela sua proteção, afinal seria bem mais difícil sair de casa sem um feitiço ou mandinga que fortaleça esse corpo que precisa transladar tantas horas para garantir o seu provento. Em tempo de jogar nossos corpos, nutrem de infância o céu e as barricadas, os trilhos e quebra-molas, as ruas e escolas para que elas possam, no tempo do trabalho, nutrir-nos de sua proteção e beleza, memória e tradição.
Barricada não é barreira. Quebra-molas não é rua. Infância não é idade. Subúrbio não é cidade.
Isso é um dizer-subúrbio.
[1] “[…] Árvore de gente/ Tronco de concreto e metal […]”. Uma canção do Subúrbio de Adil Franco traz consigo uma trama de sua fiada, um retrato das suas partes mais íntimas e nos convida a mergulhar nas suas paisagens.
[2] “Elevador horizontal/ Máquina de trabalho/ Ela guarda os sonhos nobres dos pobres[…]”. Na canção “Árvore de Gente”, o compositor Adil Franco narra a estação de trem em suas primeiras horas de funcionamento, do ponto de vista de quem pega o trem.
[3] “[…] Na parte oeste da cidade/ Onde o sol escorre/ Pelos fios de cobre dos postes[…]” Comum ao corpo suburbano, as altíssimas temperaturas dos dias ensolarados, agravadas pela majestosa Pedra Branca e por sua totalidade territorial coberta quase integralmente por concreto e metal, asfalto e máquina, aqui, Adil fotografa ainda em sua canção “Árvore de Gente” essa característica fundamental do corpo suburbano.
[4] “[…]Do Homem que procura o choque das costas com o chão/ No ímpeto louco de ver a estrela brilhar no seu chapéu[…]”. A Canção “João” conta a história de um menino que caiu da mangueira, dessa árvore gigante que sombreia os nossos trilhos. Composta por Yuri Costa e Adil, ela aparece nesta cena, uma mescla da história das nossas árvores e memória das nossas sombras.
[5] “Das plantas por baixo das plantas que eu não consigo ver[…]”. Yuri Costa diz dessas plantas que se emaranham em todos os tipos e tamanhos, umas por baixo das outras, e nos emprestam uma noção de que não há fim e nem início, grau de importância ou consecutividade na apreensão do mundo, que em diversos sentidos nos escapa à vista.