2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023
E se o subúrbio falasse?
Morro do Juramento, Thomaz Coelho.
Foi neste território que nasci e vivi minha primeira infância. Lembro da voz de Jovelina saindo da vitrola antiga e se espalhando pela casa. Eu olhava para a capa do LP e via aquela mulher negra, madura, com um lenço nos cabelos… sua imagem me fascinava. Algo nela me remetia à face de minha avó materna.
As memórias do subúrbio se constroem assim, coletivamente. São as histórias contadas pelos mais velhos, as vivências experienciadas na rua, no quintal de casa… São as lutas compartilhadas, o senso de comunidade que perpassa toda a vizinhança. São as ciências das ervas das rezadeiras e tecnologias dos mais velhos, que em suas “gambiarras” criavam e recriavam estratégias de bem viver.
E se o subúrbio falasse?
Eu olho para o subúrbio com olhos de afeto. O afeto de quem nasceu, cresceu e floresceu neste território, porém, sei que existem olhos que nos observam de cima para baixo, que subestimam e subalternizam as nossas potências, a nossa cultura, a nossa maneira de gozar a vida. Nos fizeram margem, logo nós que fazemos a roda girar.
E por fazer a roda girar, já deu minha hora. Fim de expediente.
Saio do meu trabalho no Centro enquanto minha mente inquieta exclama cansaço. Cansaço de ouvir as histórias serem contadas sempre a partir de uma mesma voz, uma voz que vem do Centro, do cartão-postal. Uma voz que valida e bajula a si mesma entre as quatro paredes de escritórios gélidos e pálidos.
E se o subúrbio falasse?
Com essa pergunta na cabeça vou caminhando para a Central do Brasil, o grande marco divisor da cidade. Embarco em um trem, sentido Santa Cruz, e imersa em meus pensamentos passo a imaginar como seria se ao invés de homens brancos, a história do Rio e o nascimento do subúrbio fossem narrados pela voz de mulheres negras. São tantos Cardeais, Generais, Viscondes, Prefeitos… Quando há uma Leopoldina, também é das mesmas bandas dos ilustres senhores protagonistas dos livros.
Como diz o belo samba de Mangueira, eu gostaria de contar a história que a história não conta!
Com esta reflexão, me torno espectadora de um outro tempo. Olho ao redor e vejo rainhas negras. Elas circulavam pelas ruas vendendo seus produtos, movimentando o mercado, se articulando e se organizando, sempre na vanguarda.
O trem parte, lotado. Me encaixo num pequeno espaço entre a porta e os bancos. Fico ali, mergulhada em minha viagem no tempo. Olho para fora e o cenário volta a se tornar preto e branco. Vejo os trilhos, e aos poucos vão surgindo construções ao seu redor. Fábricas, vilas, bairros, favelas… os trilhos se esticam e a cidade parece correr para alcançá-los. Quem também corre são as trabalhadoras. Mulheres negras operárias das fábricas, que com as mudanças decorrentes das reformas urbanas e a expansão industrial vão sendo lançadas na direção do recém-nascido subúrbio.
Praça da Bandeira, São Cristóvão… o trem me balança e eu volto para o agora. Passo a observar os passageiros do trem. Olho para uma mulher negra, . Ela está de pé, parece cansada. Quantas jornadas deve ter enfrentado até agora, às de uma ? Onde será que ela mora? Quantas tramas dessa cidade não foram costuradas com o fio de seu caminhar?
Reflito sobre as dinâmicas que envolvem a circulação e o acesso à cidade. Penso que as elites olham para o subúrbio apenas como um grande depósito de mão de obra. Alguém comenta que o trem expresso agora acaba mais cedo. Final de semana então… só parador. Lembrei do verso de Racionais MCs e pensei: o mundo é diferente da Central pra cá!
O trem passa pela estação de Engenho de Dentro. Próxima parada Madureira, . Saio do trem amarrotada e ainda imersa na ânsia de ver a história do meu subúrbio contada através da simplicidade tão rica do cotidiano de quem o constitui.
Me misturo à multidão até a saída da estação. Desço a passarela e caminho na direção da Estrada do Portela. Respiro fundo, sinto Madureira como um enorme coração pulsante, vivo! Madureira exala história, exala cultura, exala suburbanidade.
“E um trem de luxo parte, para exaltar a sua arte, que encantou Madureira…”
A voz de Roberto Ribeiro me faz pensar nas tias que ergueram as duas grandes estrelas da Madureira: Império e Portela. Piso nesse chão devagarinho. Chão que foi pavimentado pelos passos de Ciatas, Suricas, Docas, Marias, Ivones, Jovelinas, Clementinas. Olho ao redor e entendo a responsabilidade que compartilho com a minha geração. É nosso dever fazer deste legado a fonte através da qual será contada a história.
E por falar em legado, vou me aproximando do grande viaduto que carrega a marca dos “grandes homens”, como quase tudo nessa cidade. Porém, seria capaz de apostar, que o senhor Negrão jamais conheceu o que os negros faziam ali, entre as grandes pilastras que sustentam as toneladas de concreto. Era uma grande roda, podia-se ouvir o som do tambu, do caxambu e do candongueiro. É o jongo, manifestação que salvaguarda a ancestralidade de um povo, e que se mantém viva até hoje pela ação de grandes matriarcas como Vó Maria Joana e Tia Maria.
E se as Marias falassem?
Observo tudo com atenção. As palmas do jongo se misturando ao som do pagode que toca ali por perto. Vejo o sorriso da senhora que abre uma cerveja bem gelada. É o subúrbio falando.
O subúrbio fala em sua própria linguagem, mas não fala para qualquer um. É como um ponto de : só o poder de decifrar tal linguagem quem é iniciado nas ciências de subverter. É mandinga, magia preta, suburbana.
O subúrbio fala nas letras do samba e no corpo que baila o funk. O subúrbio fala quando acordamos cedo e cruzamos fronteiras para ganhar o pão e fala ainda mais quando a gente não vai. O subúrbio fala através das linhas da minha escrita, e da produção de saberes de tantos que têm se comprometido a resgatar o passado, registrar o presente e construir um futuro no qual a fala do subúrbio ecoe tão alto que abale as estruturas que teimam em não querer nos ver voar.