Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº2/ 2023

2 Espacialidades suburbanas - Vol. 1 Nº2/ outubro 2023

Crônica

Olha o trem! Corre!

Juliana Souza do Rego

Imagine um trem. Simplesmente um trem: seu formato, suas cores e seus sons. Dê-se uns segundos para imaginar. Seus trilhos vão de onde a onde? Em que estações ele repousa? Que histórias transporta?

O trem que viaja no imaginário de alguns não é o mesmo daqueles que amontoam seus corpos cotidianamente nos vagões da Supervia, a estrada de ferro que os translada entre o Centro e os diversos subúrbios cariocas.
Como quem residiu em Marechal Hermes a maior parte da vida, tenho inúmeras memórias das idas e vindas entre o meu território e a Central do Brasil, seja no ramal parador, que ia até Deodoro, seja no direto, cuja estação final é Santa Cruz.

Entre os elementos do lirismo ferroviário, há de se lembrar da poesia sonora do conjunto de vagões sobre os trilhos, produzindo um som desafinado que embala corpos cansados e desengonçados no ritmo chacoalhador do trem. Há de se lembrar do canto das rodas friccionando os trilhos e exalando um cheiro amargo e quente que eu e minha irmã chamávamos “o cheiro do inferno” e imaginávamos o tinhoso remexendo seu caloroso caldeirão e exalando fumaça sob o chão por onde se firmaram aquelas linhas férreas. Há de se lembrar de teias de braços segurando barras de apoio, antigas “chupetas”, penduradas no teto, na tentativa de equilíbrio, com ajuda de pernas entreabertas, que se misturam e perdem seus donos enquanto tentam vetorizar uma via de equilíbrio entre o centro do corpo e o vagão cujo chão não se consegue avistar. Há de se lembrar dos vendedores ambulantes, empreendedores criativos, vendendo bem e barato o passatempo da nossa viagem; dos pedintes, estendendo a mão ao contar tristes histórias ou distribuindo desgastados folhetos em busca de solidariedade; dos garotos jornaleiros exibindo manchetes sensacionalistas que faziam vender seus jornais; dos pastores fervorosos espalhando suas palavras de deus; dos artistas fazendo de cada vagão um palco e garantindo humildes cachês, depositados no chapéu que cumprimenta o público após cada apresentação…

E há de se lembrar de uma sexta-feira, ano de 2010. Eu trabalhava em uma escola em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. Tinha combinado com uma amiga do trabalho, que morava no Flamengo, sairmos juntas da escola e ela ir conhecer minha casa, em Marechal Hermes, e passar o final de semana lá. Saímos de Botafogo por volta das 21h. Pegamos o metrô até a Central do Brasil. Já quase 22h na Central e o trânsito de pessoas era intenso. Noite de sexta-feira e os corpos repletos de uma agitação cansada e ansiosa. Multidões de pernas apressadas na ânsia de chegar em casa às vésperas do final de semana. Paramos em frente às telas de TV da Central onde ficavam expostos os horários das próximas saídas. A essa hora todos os trens são paradores e o que me servia era o ramal Santa Cruz. Não se via ainda horário de nenhum parador e muitas pessoas, em pé também em frente à tela, aguardavam seus trens. Braços cruzados, mochilas nas costas ou sacolas nos braços ou uma pasta na mão, ou tudo ao mesmo tempo. Pé batendo curto no chão, depois o outro pé, quadris em movimentos de transferência de peso de uma perna a outra, unhas entre os dentes, uns suspiros altos, mãos esfregando o rosto, uma lata de cerveja nas mãos, um salgado graúdo em outras mãos, fones nos ouvidos, conversa pra lá, conversa pra cá. E olhos concentrados na tela que desenhava os trajetos finais de tantos passageiros. Todos se preparavam para um único momento. E eis que quando piscou na TV o aviso de que na plataforma 6, linha E, sairia, dentro de instantes, o próximo trem parador a Santa Cruz, instaurou-se um movimento urgente vindo de um mesmo impulso, em direção a um mesmo objetivo. Um aglomerado de pessoas corria em direção à plataforma, para pegar o trem e também conquistar um lugar cômodo ou menos incômodo. Corre! Eu puxei minha amiga pelo abraço e corremos juntas. Em alguns instantes, estávamos dentro do trem, mas não conseguimos sentar. Que droga! Fiquei chateada. Ela, vermelha, ofegante, não entendeu o que estava acontecendo. É assalto? Arrastão? Eu disse que era só pra pegar o trem mesmo. Ela continuou sem entender. Quando eu fui tentar explicar, a doce voz da locutora da Supervia lançou o aviso de que o trem na plataforma 6, linha E, não seguiria viagem naquele momento, e o próximo trem parador a Santa Cruz sairia da plataforma 4, linha D. Eu novamente puxei minha amiga pelo braço e saímos em disparada. Agora,, corre de verdade! Ela me acompanhou. Entramos no novo trem a tempo de sentar; apertadas, mas sentadas. Respirei aliviada. Minha amiga continuava confusa. É assim sempre? Não. Depende do horário. Eu expliquei com a tranquilidade de quem estava acostumada. Ela, toda vermelha do tanto que tinha corrido. Nós duas espremidas em um banco que comportava mais gente do que as leis da física acreditariam ser possível. É aquele esquema: se um quer acomodar as costas no banco, o do lado tem que curvar o tronco pra frente. Não cabem tantas costas no mesmo banco, e aí os corpos vão revezando o encosto ao longo da viagem, em uma espécie de acordo tácito, que os frequentadores diários do vagão já conhecem. Observei algumas pessoas entrando frustradas no trem por não conseguirem sentar após a mudança de plataforma. Houve um burburinho inicial. Alguns reclamando. É sempre assim. Que falta de respeito. Outros riram da aventura. Alguns só respiravam ofegantes. O trem deu partida e aos poucos outros barulhos foram ganhando maiores proporções. Os vendedores colocaram à mostra suas mercadorias. Algumas latinhas de cerveja se abriram. Em um canto alguém puxou um pandeiro e um samba. De vários pontos muitas vozes conversavam. Em alguns bancos, pessoas dormindo abraçadas em suas bolsas, naquele esquema das costas curvadas. Na minha frente, um grupo de amigos apoiou um caixote e abriu um jogo de cartas, no meio do trem cheio. Eu e minha amiga fomos acompanhando a sueca, o papo, o samba, as cervejas.

JULIANA SOUZA DO REGO é artista suburbana nascida e crescida em Marechal Hermes, onde foi uma das fundadoras da Trupe de Lá TAG, grupo do qual é diretora há 10 anos. É mãe atípica, escritora, diretora e professora de Teatro, mestre em Artes Cênicas pela UniRio, com pesquisa que estuda relações entre teatro e periferia na cidade do Rio de Janeiro.