Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Crônica

774 – Caminhos do coração

Flávio Lima

Exausto, depois de um longo dia de trabalho na baixada fluminense, peguei o trem e desci em Madureira para tomar um ônibus até a minha casa. Esperei alguns minutos e o ônibus chegou, o 774 – Madureira-Jardim América. Foi aí que tudo começou.

Assim que subi os degraus da porta de entrada, chamou minha atenção um gracejo do motorista direcionado à cobradora.  Logo entendi que aquela conversa entre eles vinha de longe.

Ele, com o uniforme impecável, cabelo cortado, máquina um, sorriso entre dentes e voz carregada de malandragem.  Enquanto girava a roleta, olhei bem para a cobradora.  Mulher jovem, belíssima, negra, cabelos cacheados e negros, tipo asa de graúna, contrastando com o largo sorriso absurda e completamente branco: Ebony and ivory total.

Sentei-me atrás do bando do motorista de onde podia ouvir perfeitamente a conversa entre ele e a colega.

– Você precisa ir lá em casa provar da minha comida! Disse ele.

– Você sabe cozinhar?! É ruim hein! Disse ela em meio a uma sonora gargalhada.

– Claro! A minha comida você jamais vai esquecer; devolveu ele.

Fiquei atento a esse belíssimo jogo de palavras e sedução que, para mim, embalava o itinerário. Olhei acima da cabeça do motorista e do para-brisa, onde em uma placa se podia ler: Fale ao motorista somente o indispensável.  Ao mesmo tempo, olhei para a trocadora que disse o seguinte:

– Quando a gente largar, vamos tomar uma lá em frente à garagem?

Pensei comigo: “Mais indispensável que isso impossível”.

Ao longo de toda a viagem percebi que o romantismo e a sensualidade daquela conversa eram imprescindíveis naquele espaço de tempo, entre Madureira e o meu destino.

Viaduto Negrão de Lima.  Imaginei aqueles dois no baile charme que rola por ali.  Uns poucos metros depois, o campo do Cajueiro, do lado esquerdo e a subida da Serrinha do lado direito: futebol de um lado, samba e jongo do outro. Avenida Edgard Romero margeada pela cultura popular do subúrbio carioca. Mais à frente, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos de Vaz Lobo, lutando para sobreviver.

O motorista se entrega: Depois do trabalho vamos ao lazer, com você então melhor ainda!

Ela devolve: Então tá!

Alguns passageiros, acredito eu, já torciam para que os dois se acertassem. À proporção que andávamos o papo ia esquentando e, em frente ao antigo cine Vaz Lobo, a cobradora pegou o celular e mandou uma mensagem.  Ela fala novamente o indispensável ao motorista: “Já avisei que vou chegar tarde”. Nesse momento, o motorista errou a marcha, o carro deu um solavanco. O coração dele deu um pulo. A essa altura passávamos lentamente pelo Irajá Atlético clube, que anunciava: Brasil Show. Já estávamos em frente à quadra do Bohemios de Irajá, terra de bambas, samba dos bons. O ônibus lotou, não pude ver nem ele nem ela. A viagem seguiu: Largo do Irajá, Nave do Conhecimento, Estrada as Água Grande, antiga sede do CASARTI – Casa do Artista Independente (celeiro de artistas dos melhores), Praça do Cimento Branco.

Desci do ônibus e, por alguns instantes, fiquei observando-o ao levar aquele par de trabalhadores, torcendo para que a cerveja deles estivesse estupidamente gelada!

FLÁVIO LIMA é geógrafo, compositor e produtor cultural. Fundador e diretor da Casa do Artista Independente (CASARTI), centro cultural com quase 20 anos de existência em Cordovil.