Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Crônica

Uma folha (memórias em três tempos)

Lorena Lopes Pereira Bonomo

[Olhar as crianças em movimento e em bando chegando à rua sem saída, todas as tardes, com mochilas nas costas, sem uniformes, brincando com tudo que encontravam no caminho, e depois adentrando à casa ao final da rua, fazia brilhar os olhos da menina que pedia, mesmo aos quatro anos de idade: quero estudar também! A professora era a vizinha, uma altiva e doce mulher negra, e ela exigia o mínimo de cinco anos para começar a alfabetizar. Tática da mãe: vamos dizer que você já tem cinco. Lembra, se te perguntar, já fez cinco! Aceita pela explicadora, vira estudante. Desvela-se a casa-escola tão próxima. Um dos cômodos recebera mesas esticadas e bancos compridos sem encosto, que abrigavam quatro ou cinco crianças cada. Mão firme e amorosa sob as nossas para aprender as letras cobrindo no caderno. No meio da tarde, entoava ritmada a frase: “Quem já fez uma folha, pode merendar!”. Fecho os olhos e posso ouvir como música. E lá íamos nós de volta às nossas casas, por no máximo quinze ou vinte minutos, para fazer um lanche e retornar. A seguir, hora dos testes de leitura para passar (ou não) de lição. De pé, ao lado de Dona Neide, eu percorria com os dedos as linhas na página do dia, marcada com data na cartilha, e a menina “pegou a manha”. Acionava sua boa memória, e passava! E pensava que era bonito ser a professora. Atravessar aquele portão dela era de sonhar].

[Eu atendia a todas as crianças do bairro, socorrendo mães, que desejavam que as crianças, mais que tudo, aprendessem. Alfabetizava e explicava em casa. Arrumei o espaço para ser a sala de aula, coloquei os bancos, o pequeno quadro verde na parede, o apontador de ferro na ponta da mesa. Fazia o almoço dos meus e chegava a hora de receber os alunos. Um dia aquela vizinha chega afirmando que a menina tinha cinco anos e já podia aprender a ler. Balela! Como se todos não soubéssemos na rua quando as crianças nasciam e faziam as festas de aniversário nos quintais, rodeando bolos imensos e copos de guaraná. Cinco não tinha ainda, mas fingi que acreditava e aceitei. Mais uma aluna, mais um pequeno pagamento, e era boa a menina. A primeira de muitas daquele quintal, que também viriam logo em seguida. Por vezes, era a explicadora nas tardes da semana e a catequista no domingo de manhã. Dupla fé. Passou por mim um tanto de crianças do entorno. Todos juntos na minha sala, mas o ensino também era de um a um. Aquele meu portão era de trabalhar].

[Aqui era o rebuliço da tarde. Vinha aquele grupo todo (até a menina de quatro anos se juntou!) rumo à casa de Neide. Parecia escola, mas era casa. Aqui não era professora particular, mas explicadora. Seus alunos e suas alunas me atravessavam correndo e rindo sobre os paralelepípedos. Por vezes levavam bolas nos pés e pipas no céu, mexiam com os cachorros dos quintais e compravam sacolés de Maria, no caminho. Enquanto passavam animadamente por mim, estava também a vizinhança, olhando pelos muros ou sentada na calçada, observando tudo, e educando também. O ensino começava na casa da explicadora, mas a educação era por todo mundo, na casa, no quintal e na rua suburbana – eu. No meio da tarde a correria para a merenda, riscavam esse chão que parecia que estavam “dando doce”! Tudo repetido ao fim de mais um dia na aula da explicadora. Ano após ano. Aquele portão em mim era de cuidar].

Essa experiência inaugural de docência geografada no subúrbio é atravessada por marcadores de classe, raça e gênero, que seguem orientando cotidianamente a professora que venho sendo. Que compreende que o domínio tático das coisas acartilhadas pode ter sua serventia… ainda mais se as reescrevemos juntando as mãos, driblando e abrindo veredas para todas as demais coisas do mundo. Na escola pública na qual estudei após passar por Dona Neide, nesse bairro suburbano em que cresci com e como professora, Oswaldo Cruz – terra de Paulo da Portela, o professor – também lecionei por mais de quinze anos. Subúrbio educador, também um quintal de lavrar a palavra, de respirar os gestos do comum e de transver o que a cidade pode ser.

Como um salve às que vieram antes, esse texto é uma homenagem à professora de uma comunidade inteira, cujo “nome não vai cair no esquecimento”. Professora Neide, presente!

LORENA LOPES  é doutora em Educação (UFF). Professora Associada do Departamento de  Geografia da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense (FEBF) e do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Geografia (PROFGEO), na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).