Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Crônica

O suburbano vive à calçada

Fábio de Brito Rezende

João do Rio, um flâneur por excelência, da caótica metrópole carioca, foi testemunha – em suas andanças pelo centro da cidade das profundas mudanças ocorridas no alvorecer do século XX. Por flâneur, refiro-me, nas palavras do cronista, a ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. É andar, aparentemente sem propósito, com uma curiosidade inata pelas ruas e vielas e observar pessoas, conversas, vozes, gestos e a forma como essa humanidade ecoa através das armações metálicas dos automóveis e pelo concreto estéril da civilização moderna.

Sendo testemunha dos processos de modernização da cidade carioca na década de 1900, a astuta observação das relações que se impuseram e se transformaram, nesse período, levaram João a uma conclusão simples e provocativa: “o carioca vive à janela”. Sem saber exatamente o que incitava o carioca (independentemente de classe, idade ou gênero) à essa ação, em sua visão inconsciente e irresistível, João do Rio refletiu sobre suas causas: “viver à janela é ver e ser visto, assim como quem sai às ruas”.

Em uma cidade que se modernizava, onde a frase “tempo é dinheiro” começava a operar como um mote civilizatório, estar à janela se apresentava como uma contradição, ou melhor, uma subversão à brasileira, uma rebeldia à modernização dos costumes.

A janela seria um ponto médio entre casa e cidade, entre o público e o privado. Uma possibilidade de urbanidade light, da possibilidade de se comunicar com o urbano, sem o contato físico das ruas abarrotadas e do caos das ruas do Rio de Janeiro. Janeleiros namoravam, conversavam, compravam através desse ponto médio. Logo, elas eram um fio condutor da sociabilidade carioca.

Porém, João viveu outros tempos, viveu o fim da “Era dos Cortiços” e o começo do “Século das Favelas”, viveu a Bélle Époque carioca e outras experiências em se relacionar com a cidade.

Hoje em dia, como se pode ser janeleiro em uma cidade de vidro espelhado? Como ver e ser visto quando o ritmo de nossas vidas se resume a borrões, a horários de almoço corridos e à construção de relações sociais cada vez menos sólidas?

Da mesma forma que a Gazeta Suburbana, em 1894, afirmou que “o carnaval morreu na Corte para reviver no subúrbio”, nossa resposta se encontra nos arrabaldes cariocas. Esses espaços que, historicamente, nos evocam outras formas de viver e sentir. Os suburbanos não vivem como se vive na urbe, e mesmo que ainda viva às janelas (na conversa das vizinhas, na troca de ingredientes e receitas, no telefone sem fio dos avisos e lembretes), apenas elas não servem para explicar a experiência suburbana.

Nós pulamos a janela e tomamos as calçadas.

Então, o que seriam as calçadas suburbanas? O que mais, se não os nossos fios condutores de sociabilidade? As calçadas são espaços de lazer, mas também os espaços de oportunidade. São as arenas da bola de gude, do peão e da pipa nos fins de semana, e quem passa ao longo da calçada da estação de Irajá com frequência, vai esbarrar eventualmente em uma partida de futebol da criançada, marcando tradicionalmente as balizas com seus chinelos. São os espaços das cadeiras (de praia ou de plástico) assentadas em frente aos portões, onde as senhoras colocam suas conversas em dia. Mas também, são o lugar da clientela dos “lava-jatos”, das vendedoras de sacolé e dos comerciantes trovadores do Picolé Boneca. As calçadas se transmutam em barzinhos, com mesas, cadeiras, cerveja gelada e eventuais partidas de baralho. São extensão das garagens que viram armarinhos e lojas de doces, salgadinhos e refrigerantes.

Qual calçada suburbana nunca viu um churrasco de domingo? E onde mais, no aperto de fim de mês, as torcidas se encontrarão para assistir uma partida de futebol através de uma televisão engenhosamente pendurada no portão ou no muro de uma casa?

A calçada suburbana subverte a lógica das ruas: andem por Madureira e saberão do que falo. Nas calçadas do Portela, em qualquer canto se ouve o coração pulsante dos subúrbios, nas vozes e nos risos, no funk e no samba. Se sente o calor da nossa gente no aglomerado de corpos que caminham e se encontram, e a energia que vibra no ar, nos ouvidos e na pele. Não se veem as janelas espelhadas do Centro: se vê gente, de todas as cores, credos e belezas.

A calçada suburbana é um espaço nosso por natureza, e se existe um espaço verdadeiramente democrático no espetáculo caótico e contraditório que chamamos de Rio de Janeiro, são estas calçadas. Até mesmo quando o suburbano deixa o subúrbio, ele não deixa de viver a calçada! Assim, em minhas andanças como pretenso flâneur contemporâneo, nessa constante observação das formas de um viver carioca, não restam dúvidas: o suburbano vive à calçada.

Fábio Rezende é suburbano de Irajá, graduado em História (Celso Lisboa) e Mestrando em Relações Étnico-Raciais (PPRER/CEFET-RJ), pesquisador de História dos Subúrbios Cariocas