Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

2023 • ano 1 • nº 3

3 A educação nos subúrbios - Vol. 1 Nº 3 / dezembro 2023

Crônica

A professora inquisidora, a Rosa de Hiroshima e o poema do barquinho agapito

Ricardo França de Gusmão

Aconteceu em meio à ditadura militar: 1977 ou 1978. Escola Municipal Rodrigo Otávio Filho (ROF), Irajá, Rio de Janeiro. Alguns estudantes, escolhidos pela direção da escola, usavam ombreiras com as letras ‘PE’ (Patrulha Escolar), para vigiar seus colegas. Era propositalmente uma doutrina que espelhava o ‘PE’ de ‘POLÍCIA DO EXÉRCITO’. E, assim, a diretora tinha o seu ‘pelotão’ de informantes para ‘dedurar’ aqueles que fugiam à rígida disciplina imposta.

Eu tinha 9 anos de idade. E ingressei no Ginásio, na ROF, que ministrava ambos os ciclos. Foi mais ou menos quando comecei a escrever poesia. Lembro que era uma criança contemplativa, reflexiva, empírica. Tímido. E o Ginásio, para mim, era avançar 10 degraus na escala do crescimento. Me sentia muito ‘importante’, portanto.

Na primeira aula que tive, de Português, a professora Sônia me encantou. Nome verdadeiro. História verdadeira. Ela levou para sala um rádio-gravador portátil. E nos apresentou a uma música: ‘Rosa de Hiroshima’, letra de Vinícius de Moraes, interpretada por Ney Matogrosso, à época, no grupo Secos e Molhados.

Eu pude sentir o ‘perfume’ da rosa. De uma rosa impregnada de sofrimento. Eu consegui sentir isso. Os versos fortes me marcaram como lâminas. “Pensem nas crianças/Mudas telepáticas/Pensem nas meninas/Cegas inexatas/Pensem nas mulheres/Rotas alteradas/Mas não se esqueça da Rosa… da Rosa (…)”.

Quando a música terminou, Dona Sônia explicou a metáfora do poema. “Gente, essa rosa, não é a rosa que nós conhecemos. Não é uma flor. Ela é a bomba atômica que devastou a cidade japonesa de Hiroshima. e, depois, Nagasaki. A rosa é uma metáfora, analogia ao cogumelo formado pela combustão da bomba”.

E falou de poesia. Antes de terminar a aula, ela lançou um desafio à turma. Um ‘trabalho de casa’. “Quero que cada um de vocês traga para a próxima aula um poema. Pode ser qualquer tema! Ok?!”.

Saí da escola eufórico. Mais sonhador do que antes. A poesia era a criptografia da minha alma. E a Dona Sônia sabia ler essa criptografia. Passei a semana escrevendo, rabiscando. Rasgando rascunho.

Até que — até hoje não sei por quê!! — peguei o álbum do Walt Disney, uma coleção de figurinhas que marcou a minha geração. Eu e meus irmãos conseguimos completá-lo. Então vi um personagem sem fama. Quase um anônimo no meio de feras como o Mickey, o Pateta, o Pato Donald…

Era um barquinho chamado ‘Agapito’. Ele tinha uma carinha na chaminé a vapor, que apitava. E o Agapito foi o tema e o título do meu poema. Manuscrito mesmo. No caderno. Ao terminar o último verso, uma onda de orgulho me ensimesmou. Agora sim! Fiz por onde estar no ginasial! E a segunda aula de Literatura iria me credenciar com o título de poeta da turma 501 (5ª série)!

Dona Sônia chegou em meio a uma expectativa geral. Havia algo de espera no inconsciente coletivo dos meus colegas. “Então, gente? Vocês fizeram o nosso dever de casa?”. Silêncio. Ela insistiu. “Quem fez levanta o dedo!”. E levantei. Olhei para os lados. Mais ninguém. Então era eu e o Agapito.

— Eu fiz, professora!

— Que bom, meu filho. Qual é mesmo o seu nome?

— Ricardo, professora.

— Então, Ricardo, pegue o seu poema e traga aqui na minha mesa para eu ver.

Eu levei o caderno. E permaneci à espera da resposta da Dona Sônia, a seu lado. De frente para a turma. Ela leu atentamente. E sua face foi ficando congelada. Num estado de seriedade. Após ler, ela olhou para mim. Era o momento que eu esperava. Agora ela iria pedir para eu ler o poema em voz alta, para a turma. Mas não.

Garoto — Já não era mais o Ricardo — foi você mesmo quem escreveu esse poema??

— Sim, professora… – Respondi, agora meio confuso. Algo estava acontecendo. Ela aumentou a voz:

— Garoto, você sabe o que é plágio???

— Não, professora…

— Sabia que plágio dá cadeia???

— Não, professora… O que é plágio? – Perguntei. Mas desde aquele momento, plágio devia ser um palavrão, uma coisa muito grave. E tive medo da resposta. Mas afinal, o que eu havia feito de errado?

— Você sabia que copiar poema dos outros é plágio??

— Não, professora. Mas acho que isso é errado… Se eu sei escrever poesia, por que iria copiar de alguém uma coisa que eu sei fazer?

— Olha, eu vou averiguar! Se eu descobrir que você copiou isso de alguém, vou te levar para a direção da Escola! – Terminou arrancando a folha, com o poema, do meu caderno. Eu não tinha cópia.

Sentei envergonhado. Meio que desviando dos olhares agora de desconfiança. Como se me acusassem de um crime. Baixei a cabeça. Mais tarde, no banheiro da escola, chorei pela primeira vez. Um choro com soluços. Chorei calado. Sem entender ainda. Agora sem o meu poema do Agapito, confiscado. Um poema sequestrado. Um poema nunca lido.

Passou o ano. Repeti a 5ª série. Depois repeti a 7ª série. E a 8ª série. Mas consegui me formar. Nesse meio tempo, ganhei um campeonato de xadrez para a Rodrigo Otávio Filho, e um festival de música entre escolas do 13º DEC. Além de concursos de poesia na Biblioteca Popular de Jacarepaguá, em Praça Seca, Zona Oeste do Rio.

O tempo foi-se no vento. Continuei a escrever poesia e a vencer concursos de poesia e redação. Um deles no Colégio Souza Marques, em Campinho.

O tempo foi-se no vento. Agora estava cursando Comunicação Social, Jornalismo, na Universidade Gama Filho. Seria jornalista! Na Gama Filho, cursei um ano com bolsa de estudos 100%, por ter conquistado o 1º Lugar no concurso de poesia em comemoração aos 50 anos da instituição, o “Cinquentão”.

Certa noite, no campus, quem encontro? Dona Sônia. Imediatamente me veio a imagem do Agapito. Me vi na mesinha de centro lá de casa, escrevendo o poema confiscado. Só que, agora, o “garoto” já tinha um nome…

— Oi, professora. Se lembra de mim?

— Acho que não…

— Fui seu aluno, no ginasial.

— Tive tantos alunos…

— O meu nome a senhora lembra sim. Me chamo Ricardo França.

— Ah… Oi, há quanto tempo… Faz o que aqui?

— Jornalismo. E a senhora?

— Direito.

— Direito?? Que bom! Por falar em Direito… A senhora já pesquisou?

— Pesquisei o quê?

— Se o poema que eu escrevi, após a aula sobre a Rosa de Hiroxima, chamado Agapito, personagem de Walt Disney… Era plágio? Lembra, aquele crime que dá cadeia?

— Não. Não sei do que você está falando.

— Pois então. A senhora pegou, de forma coercitiva, o original do meu poema. Não tinha feito cópia. A senhora levantou, em público, na frente dos meus colegas de turma, se eu havia cometido o crime de plágio. A senhora abusou da sua condição de professora. Me humilhou. Eu poderia ter parado de escrever. Mas graças a Deus, esse dom até hoje carrego. E por conta disso, faço jornalismo. E a senhora? Eu respondo. A senhora nunca mais faça isso com “garoto” nenhum. Porque, se eu souber, eu irei denunciá-la. Numa bela reportagem, no jornal dos estudantes aqui da faculdade. Siga o seu caminho. Porque apesar de você, eu segui o meu.

O tempo foi-se no vento. Nunca mais vi ou ouvi falar da dona Sônia. O poema do Agapito deve ter sido engolido por uma lixeira. Nunca entendi o porquê, o motivo da atitude dela.

O tempo foi-se no vento. Fui contratado pelo jornal O DIA, ganhei dois prêmios internacionais de jornalismo. E um nacional, categoria acadêmico, como professor orientador de uma grande reportagem sobre prostituição, realizada por 40 alunos das primeiras turmas de jornalismo da Universidade Estácio de Sá, em Nova Friburgo.

O tempo foi-se no vento. E o álbum do Walt Disney permanece comigo. Completo. Com a figurinha do barquinho Agapito apitando nele.

O autor (acervo pessoal)

RICARDO FRANÇA DE GUSMÃO é jornalista, professor, poeta, ativista cultural e morador de Vaz Lobo. Conquistou três prêmios de reportagens de Direitos Humanos, dois internacionais (Sociedade Interamericana de Imprensa-SIP e Mercosul), e um de dimensão nacional, na condição de repórter especial e professor orientador universitário. Publicou 29 livros de poesia, contos e crônicas. Selo editorial: Independently published.