Revista Novos Dialogos Suburbanos Revista Novos Dialogos Suburbanos

Vol. 1, Nº 1/ 2023

1 Cultura e sociabilidades - Vol. 1 Nº 1/ agosto 2023

Depoimento

O Rio de Janeiro sem praia

Monica Cunha

Era 1974, eu tinha 14 anos, quando encarei meu primeiro grande desafio. Morava na Cidade de Deus e conhecia muito pouco a “Cidade Maravilhosa”. Resolvi, então, numa atitude radical, enfrentar a timidez, arriscando-me como mascate, vendendo “bugigangas” de porta a porta no subúrbio carioca.

Meu vizinho me contou, entusiasmado, que tinha conseguido um trabalho de vendedor de utensílios domésticos de plástico, sabonetes, pentes, águas-de-colônia populares, batons e brinquedos. Animado e precisando de dinheiro, logo me ofereci para o trabalho também.

O escritório era uma porta ínfima, no bairro do Méier, onde só cabiam o dono do negócio, seu ajudante e as mercadorias. Para driblar o calor, o homem vestia-se de maneira bastante informal, dentro de uma bermuda jeans surrada, chinelos e camiseta regata. No subúrbio não se pode sentir a brisa do mar, e quando a temperatura passa dos 40ºC, a sensação térmica passa dos 50ºC. Até hoje, é comum o carioca marcar encontros na praia ou no boteco, com conversas regadas a cerveja, porque a temperatura na rua é bem mais agradável do que dentro de casa.

Desbravei, praticamente, todo o subúrbio carioca a pé, pois não existia, ainda, a indústria da violência, e as ruas não tinham portões embarreirando a entrada dos transeuntes. Éramos livres para andar pela nossa “Cidade Maravilhosa”! O subúrbio era lindo. Com suas casas bem cuidadas e pitorescas, exibindo a data da construção, frases ou santos que as famílias acreditavam proteger seus lares. E na fachada, para o santo não errar de endereço. Embora, nem sempre o santo revelasse a religião do morador, pois existia no Rio de Janeiro, e principalmente, no subúrbio, uma prática religiosa apelidada pelo carioca de “Católica Apostólica Macumbeira”, revelando o forte sincretismo religioso na cidade. Os “centros de macumba” – era assim que chamávamos os terreiros de Umbanda e Candomblé – ficavam longe do centro da cidade, geralmente em bairros do subúrbio ou na Baixada Fluminense, o que favorecia a influência da matriz africana. As festas nos “centros”, as festas juninas, cantorias embaladas pelos violões e as rodas de samba, eram a sensação naqueles locais onde se produzia mais cultura popular do que erudita. A maior parte dos teatros, salas de concerto e museus localizava-se nos bairros em que se concentravam as famílias mais abastadas, e longe do subúrbio, onde os proletários residiam.

Os jardins das casas? Eram maravilhosos! Com muitas rosas, dálias, trombetas, manacás e samambaias choronas complementando o cenário. As espadas de São Jorge e de Iansã, que protegiam a casa, também não podiam faltar!

Apesar da festa de Cosme e Damião ser a preferida das crianças suburbanas, não existe santo mais popular do que Sâo Jorge, cuja festa é no 23 de abril (Foto de José Wilson Sussu /@sussuphotos)

 

As casas têm seus santos de proteção logo na fachada, não vá ele errar de endereço! (Foto de José Wilson Sussu /@sussuphotos)

O comércio era dominado pelos portugueses bigodudos, equilibrando-se em seus tamancos de madeira, nas quitandas que vendiam verduras, nas mercearias que vendiam secos e molhados e nas padarias, que vendiam pães quentinhos pela manhã e à tarde. Horários nos quais formavam-se filas à espera da iguaria. Era delicioso ver a manteiga derretendo no pão que mal conseguíamos segurar de tão quente.

A calçada era a praia do suburbano. Quando o sol se punha e o jantar estava pronto, os adultos colocavam cadeiras nas calçadas para conversar com os vizinhos e aliviar o calor. Adolescentes se reuniam em frente a algum portão, enquanto as crianças brincavam sob os olhares dos adultos perto de casa. Eram brincadeiras como: garrafão, amarelinha, pique-pega, pique- esconde, bola de gude, pipa, bandeirinha, taco, carniça… A criançada na rua brincando, solta, de pés descalços e pouca roupa.

O verão trazia uma das melhores sensações que podíamos experimentar: o banho de chuva. Aquelas chuvas tropicais que caíam pesadas sobre nossas cabeças nos fins de tarde. Até hoje, posso sentir os pingos gelados sobre a minha pele aquecida pelo sol dos trópicos, e as gotas enormes, que eu tentava capturar e matar a sede, com a boca aberta para o céu. Os verões traziam os temporais e as cigarras que tentávamos domesticar, amarrando uma linha em volta de seus corpos e deixando que elas nos levassem para onde quisessem, pois era impossível controlar seus voos. Sacrificamos centenas de vagalumes, esfregando-os em nossas roupas para desenhar coisas abstratas e indecifráveis, somente para ver a mágica de seu brilho, por poucos segundos, sobre o tecido.

Entretanto, a festa mais linda e mais esperada por todas as crianças do Rio de Janeiro, naquela época, era a de São Cosme e São Damião. E adivinha onde a festa era mais farta, alegre, divertida e colorida? No subúrbio, claro! Para nós, crianças íntimas dos santinhos, eles eram só Cosme e Damião. Ninguém ia para a escola nesse dia. Reivindicamos e instituímos o feriado. Passávamos o dia inteiro andando pelas ruas em bando, procurando as casas que dariam doces para enchermos nossas sacolas.

Voltando às vendas, minha bússola era a Avenida Suburbana, a mais importante do subúrbio da cidade. São, aproximadamente, onze quilômetros que ligam o bairro de Benfica a Cascadura, passando por Jacarezinho, Manguinhos, Maria da Graça, Méier, Del Castilho, Cachambi, Engenho de Dentro, Pilares, Abolição, Piedade e Quintino Bocaiúva. Antes de ser a Avenida Suburbana, era parte do Caminho Imperial ou Caminho dos Jesuítas, Caminho das Minas, Estrada Real de Santa Cruz, ou ainda, Estrada Imperial de Santa Cruz. Essa era a ligação entre o município da Corte e Sepetiba, passando pela entrada da Fazenda Imperial de Santa Cruz, refúgio da Família Imperial Portuguesa.

Percorri a maior parte das ruas do subúrbio e descobri que o carioca é um povo solidário e hospitaleiro. Ofereciam-me almoço, água gelada, lanche e café.  Aquela hospitalidade suburbana amenizava a dureza do trabalho.  Assim, dos 14 aos 18 anos, conheci o belo subúrbio carioca. Trabalhando e batendo de porta em porta, aos poucos, o subúrbio foi adentrando minha alma, percorrendo minhas veias, aquecendo meu sangue, animando a vida… E aonde quer que eu vá, ele sempre me acompanha.


Nota dos editores:
Este depoimento em forma de conto é uma adaptação de outra obra da autora, ainda em processo que conta a história de determinado personagem carioca, em sua passagem pelo subúrbio.

Sobre a autora: MÔNICA SOARES DA CUNHA é natural de Marechal Hermes e vive na zona oeste. Formada em Educação Artística e professora aposentada pela rede municipal e estadual do RJ. Apaixonada pelo subúrbio e por escrever, gostaria que as pessoas percebessem os subúrbios através de um olhar carinhoso.